Segredos do risoto antológico criado por Gualtiero Marchesi, que foi preparado na XIIª Settimana della Cucina Regionale Italiana, realizada na cidade de São Paulo
Um dos pratos de sucesso na XIIª Settimana della Cucina Regionale Italiana, realizada de 23 a 29 de outubro em São Paulo, SP, foi o risoto Riso, Oro e Zafferano. Sim, o cobiçado metal precioso de cor amarela, utilizado de várias maneiras ao longo da história humana, também pode ser comido. É ingrediente de receitas salgadas, sushis, doces, bolos, sorvetes e até bebidas. O Riso, Oro e Zafferano saboreado em São Paulo foi preparado no restaurante paulistano Piselli Jardins, da rua Padre João Manuel, 1253, pelo chef italiano Andrea Fugnanesi, do Stua Noa, da comuna de Livigno, na Lombardia. O talentoso cuoco representou aquela região setentrional da Itália na XIIª Settimana della Cucina Regionale, enquanto patrícios e colegas seus faziam o mesmo em outros dezenove restaurantes da cidade.
O risoto chegou à mesa acompanhado de um dos bons vinhos lombardos, pouco conhecidos no Brasil: o Costaripa Campostarni Vatenesi D.O.C. Rosso 2015, à base das uvas Groppello Gentile, Marzemino, Sangiovese e Barbera, cultivadas no oeste do Lago de Garda. Tinha cor rubi intensa, aromas de amoras, framboesas e flores, sabor de compota de cereja, taninos macios e corpo equilibrado. Já o prato, como o nome indica, era um risoto de zafferano (açafrão, em português) coroado por uma pequena e fina folha quadrada de ouro 24 quilates.
Foi preparado conforme a receita antológica criada por Gualtiero Marchesi (1930-2017), um dos chefs mais famosos do mundo, fundador da Nuova Cucina Italiana. Esse movimento inspirava-se na renovação culinária introduzida na Europa, na década de 1970, pela Nouvelle Cuisine Française, liderada pelos Irmãos Troisgros, Michel Guérard e Paul Bocuse. Os pratos da variante italiana caracterizavam-se igualmente pela leveza, delicadeza e ênfase na apresentação, equilíbrio dos sabores e respeito aos valores nutricionais.
Difícil encontrar uma receita mais representativa da Nuova Cucina Italiana do que o Riso, Oro e Zafferano. Marchesi inventou-o em 1981, quase por acaso. Um joalheiro de sobrenome Angeletti, talvez romano, também produtor de folhas de ouro 24 quilates comestível, encomendou-lhe um prato com esse adereço de luxo, a ser incorporado ao cardápio do jantar que ofereceria a um tio. Até a hora da refeição, porém, Marchesi não teve ideia da receita que criaria. Angeletti chegou ao restaurante e, um pouco decepcionado, reiterou o pedido.
Pressionado pelo cliente, Marchesi simplesmente resolveu acrescentar uma folha de ouro sobre o risotto enriquecido com açafrão, já existente no seu cardápio. A fim de ressaltar o visual, serviu-o em um prato fundo de cor preta e aconselhou saboreá-lo com a colher, não com o garfo, aliás tradição respeitada por muitos chefs até hoje. Embora obtivesse sucesso imediato, o Riso, Oro e Zafferano ficou de quarentena até 1985, quando o fotógrafo veneziano de cozinha Riccardo Marcialis pediu a Marchesi que o preparasse para uma reportagem. Assim o prato ingressou definitivamente no cardápio do grande chef, do qual nunca mais saiu, além de ser copiado mundo afora.
Com o arroz cozido al dente, porém cremoso e perfumado, ou seja, com preparação perfeita, o Riso, Oro e Zafferano converte-se em irresistível delícia. Analisando-o esteticamente, Marchesi descreveu-o assim, repetindo o que disse no livro “Marchesi Si Nasce – Questa è La Mia Storia” (Rizzoli, Milão, 2010): “A preciosidade do prato é sublinhada pela folha de ouro. A cor da lâmina brilhante realça a gratificação ótica e introduz tonalidades opostas entre o leito de arroz amarelo sobre o qual ela é colocada, contrastando com o preto da cerâmica do prato individual onde é servido o risoto” (Gualtiero Marchesi – Marchesi Si Nasce, Rizzoli, Milão, 2010).
Marchesi nasceu e morreu em Milão. Entretanto, teve restaurantes não só na capital da Lombardia. Abriu um em Erbusco, a cerca de 73 quilômetros dali, outro em Paris e um terceiro em Roma, em anos diferentes e não nessa ordem. Começou a trabalhar muito cedo, obviamente na cidade natal, na cozinha do L’ Albergo del Mercato, dirigido por seus pais. Depois, mudou para St. Moritz, na Suíça, onde frequentou a Scuola Alberguiera di Lucerna, com aprendizado no Kulm Hotel de Saint Moritz. Completou a formação estagiando em restaurantes franceses, sobretudo no pertencente aos Irmãos Troisgros, em Roanne. Em 1985, à frente do “Gualtiero Marchesi”, de Milão, recebeu três estrelas do “Guia Michelin”, o primeiro restaurante na Itália a obter esse reconhecimento. Quando morreu, comandava o Il Marchesino, no Teatro alla Scala, de Milão.
Defendeu até o último dia de vida a autenticidade do Riso, Oro e Zafferano. Em 2015, dois anos antes de morrer, venceu nos tribunais italianos uma ação contra o discípulo Guido Rossi, que rompeu com ele e abriu o próprio restaurante em Milão. Acusou o antigo “pupilo” de faltas graves, mas a principal consistia em desfigurar a receita do seu risotto pela incorporação de um ingrediente herético. Na receita original, Marchesi utilizou o arroz italiano carnaroli, considerando-o mais adaptado ao prato típico da Itália Setentrional, notadamente da Lombardia. Tem grãos de tamanho médio, mais finos e com mais amido que o também italiano arroz arbório, garantindo assim um risotto mais cremoso. Para completar, requerem mais tempo de cozimento e mantém melhor o ponto al dente.
O dissidente Rossi escolheu o arroz basmati, de grão longo e origem indiana. Segundo Marchesi, apesar de apresentar boa qualidade, é inadequado ao risotto. Os juízes do tribunal reconheceram seu direito de autor e interditaram a comercialização do reinterpretado Riso, Oro e Zafferano (o nome continuava o mesmo). Caso a proibição fosse desobedecida, Rossi pagaria 100 euros a cada prato desobediente que preparasse no restaurante. Também estaria sujeito a uma pesada multa diária. Para completar, os juízes do tribunal condenaram Rossi a ressarcir financeiramente Marchesi. O valor seria estabelecido pela Procuradoria da República Italiana.
Marchesi não foi o primeiro cozinheiro no mundo a usar o ouro na comida e nem o último. Na Idade Média, os alquimistas acreditavam na magia do metal precioso. Julgavam-no capaz de influenciar o espírito, de expandir a sabedoria e assegurar a longevidade humana. Comparavam seu brilho ao sol, fonte de luz natural, calor e energias necessárias à vida na terra. Não se importavam com o fato de faltar ao ouro a capacidade de mudar a textura dos alimentos. Também não tem sabor, nem o metabolizamos quando o ingerimos, pois não o processamos para suprir nossas necessidades estruturais e energéticas. Portanto, confere apenas glamour aos pratos. Só falta aparecer um cientista tira-prazer acusá-lo de provocar doença grave, com base na suposição improvável de que algum resíduo do ouro não seja eliminado pelo nosso organismo.
Faz-se a folha de ouro comestível derretendo o próprio metal puro a mais de 2.000 graus Fahrenheit. Deve ficar em forma de pequena barra. Finalmente, martela-se o ouro até atingir a espessura de 0,0001 mm. Por ser tão delicado, não alcança preço exorbitante. Compra-se o ouro comestível no Brasil através de sites como Magazine Luiza e Mercado Livre. Os preços começam em R$ 10 a folhinha quadrada. Daí porque no restaurante Piselli o cardápio completo da XIIª Settimana della Cucina Regionale, com antipasto, primo piatto (justamente Riso, Oro e Zafferano), secondo piatto e dolce, custava 279 reais no almoço e 350 no jantar.
Nada comparável aos 9 mil reais que, durante a Copa do Mundo do Qatar ou Catar, em 2022, Ronaldo Fenômeno, Militão, Gabriel Jesus e outros astros reluzentes da seleção brasileira pagaram por um bife revestido de folhas de ouro 24 quilates na churrascaria Nusr-Et, em Doha, a capital do país. “Não foi culpa do ouro, mas do preço sideral da carne”, declarou um deles. “Dinheiro na mão é vendaval/É vendaval”, diz o refrão da canção de Paulinho da Viola, que nem deveria ser usada aqui, pois o sentido é mais complexo, porém vamos lá. Popular na década de 1970, a expressão passou a significar, na voz ingênua e pura do povo nacional, algo como “ganhar e gastar velozmente”. A imprecisão deriva do fato dos brasileiros comedores do bife com ouro em Doha disporem de muita grana para torrar.
Receita de risoto: riso, oro e zafferano
(Arroz, ouro e açafrão, o clássico Risoto à milanesa em versão de Gualtiero Marchesi)
Rende 4 porções
Ingredientes
.300g de arroz italiano carnaroli
.60g de manteiga
.200ml de vinho branco seco
.1 litro de caldo de carne, aproximadamente
.5g de pistilos de açafrão italiano, ou espanhol
.50 g de cebola bem picada
.2 colheres (sopa) de aceto balsamico
.10g de queijo parmigiano-reggiano ralado
.4 finíssimas folhas de ouro comestível de 24 quilates
Modo de preparo
1. Em uma caçarola, misture muito bem o arroz com 20g da manteiga.
2. Junte 100 ml do vinho e leve ao fogo brando. Banhe com o caldo de carne fervente, incorpore o açafrão e deixe cozinhar em fogo brando, mexendo seguidamente, até o álcool evaporar e o arroz ficar al dente. Reserve.
3. Em uma pequena caçarola, à parte, faça murchar a cebola em 10g da manteiga. Incorpore o vinho restante, o aceto balsamico e reduza o líquido pela metade. Retire do fogo, adicione a manteiga que sobrou, em pedacinhos, e emulsione com um batedor de arame. Se quiser eliminar a cebola, passe esse molho por uma peneira fina.
4.Misture esse molho ao arroz que estava reservado e junte o queijo ralado.
5.Finalize distribuindo o risotto nos pratos, uniformemente. Coloque no centro de cada um a folha de ouro e sirva imediatamente.
Notas
1.Marquese esteve em São Paulo no final da década de 1990, para uma apresentação especial no novo restaurante Infinito, do Hotel Gran Meliá, instalado no prédio do World Trade Center. Preparou o Riso Oro Zafferano, mas teve que servi-lo em prato branco, pois o preto não foi encontrado na cidade.
2.No Brasil, o ouro comestível pode ser adquirido através de sites como Magazine Luiza e Mercado Livre. Os preços começam em R$ 10 a folhinha leve e pequena. Em sites americanos, é possível encontrá-lo em outros formatos, como em flocos ou em spray.
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