pilao dende
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O processo de escravidão no Brasil, com a captura e transporte de africanos, gerou muitas dores aos negros. Uma dessas dores foi a ruptura com a cultura alimentar de raízes negras. Hoje, ganha força a recuperação dessas práticas e raízes, por meio de talentosas profissionais que se dedicam a estudar e a praticar cozinha ancestral de origem africana.

Os alimentos sempre foram motivo de rituais, de reunião e de promoção de cultura, desde muitos séculos. E na África esse processo nunca foi diferente de outros locais no mundo. As maiores diferenças estão nas particularidades locais quanto a disponibilidade de alimentos, em função de clima, solo e práticas de manejo e de criação de animais.

Aline Guedes, professora de gastronomia, com mestrado em hospitalidade e pesquisadora de cultura alimentar quilombola, entende que ocorreu a quebra de tradição e cultura com continente africano quando foram trazidos para a América. O transporte de escravizados afetou a saúde mental e a cultura, as pessoas perceberam que não pertenciam à sociedade onde foram inseridas.

“A população negra tem necessidade de recuperar as ancestralidades, se reconectar com suas origens e tradições alimentares. As pessoas precisam saber quem são”, defende Aline. O conteúdo existe e está disperso por todo o país, nos diversos quilombos existentes.

A relação da população negra com os alimentos vem desde o Antigo Egito, ainda que tal fato seja muito mal explorado. A população no Egito à época era preponderantemente negra.

Recentemente foram encontrados em uma catacumba no deserto egípcio dezenas de vasilhames de barro fechados contendo vinho e sementes de uvas. Estimam que têm mais de 5 mil anos de idade. O tema vinificação no Egito antigo igualmente carece de mais estudos.

O café é outro item de origem africana, com os primeiros indícios de sua produção na Etiópia. Hoje é um produto nobre, de consumo mundial e cercado de muitos rituais de preparação e consumo.

Aline destaca que diversos outros alimentos de nosso dia a dia são igualmente de origem africana: quiabo, melancia, inhame, maxixe, para citar apenas alguns.

A comida nos quilombos

Em cada região, os quilombolas adotam práticas e têm hábitos particulares, de acordo com o que conseguem produzir no local em função de terra, clima e espaço disponível. Planejam o que é possível plantar e animais que podem ser criados no local, sempre de pequeno porte. Tal restrição os leva a consumir menos carnes de animais.

Aline explica que a comida de quilombo é muito simples, regional e sazonal. “Produzem e consomem de acordo com o território que têm, e as regiões do país. Cada um tem próprios ingredientes e preferências no modo de preparo”

As mandiocas são os itens mais presentes em todo o país como item de subsistência. São muito flexíveis quanto ao uso. Existem diversas variedades de acordo com os locais onde são plantadas. Algumas comunidades as usam como base culinária para diversos pratos e na produção de ingredientes, farinhas, biju, tapioca, que podem ser comercializados nas comunidades próximas, gerando renda.

Entre os ingredientes mais comuns, está a banana. Presente em todos os quilombos, é usada integralmente: o coração, as folhas, o fruto e a casca. Tudo se aproveita.

“Existe uma comunidade quilombola localizada no Vale do Ribeira onde as ostras são importantes na composição alimentar. São usadas na elaboração de diversos pratos”, explica Aline para ilustrar as particularidades de cada comunidade e região onde se encontra.

Um item é presente em todas as comunidades no país: o pilão. Também importante na cultura alimentar indígena, o pilão é um utensílio básico na preparação de muitos alimentos incluindo farofas, milho, óleo de dendê, para preparar ervas, alho, massas para cuscuz.

Aline ressalta que o dendê está entrando em fase de extinção. O produto disponível em vidros nas redes de varejo não tem nada a ver com o dendê feito no pilão em diversas regiões do país.

Outras práticas como produzir goiabada em tacho de cobre também estão ameaçadas de extinção devidos aos processos industriais de produção que tiram a competitividade dos produtos artesanais.

Hoje existem pequenos movimentos que se organizam com estruturas próprias, não dependendo das iniciativas externas. A comunidade negra está tomando a iniciativa de promover a cultura alimentar, com acolhimento e conhecimento. Uma dessas é o Prêmio da Gastronomia Preta, para equipes de cozinha e de salão.

Iza Souza, chef de cozinha e “eterna aprendiz”, resgata a cultura alimentar de raízes negras

Cozinhar não se limita a misturar ingredientes para obter um prato saboroso e nutritivo, tem que levar à elevação espiritual. Essa é a premissa do trabalho de Iza de Souza, chef de cozinha de Trancoso, Bahia, que busca o resgate da cultura alimentar de raiz negra, adicionando espiritualidade na comida.

Iza tem avó quilombola e pai indígena tupinambá pataxó, que imprimiram diversas influências nos hábitos de preparar e consumir alimentos. Ela começou a cozinhar somente quando tinha 30 anos de idade, e se aprofundou na pesquisa de raiz negra na cozinha após 10 anos de atuação.

“Tenho que transformar o prato, incluir o que aprendi em Trancoso da cultura afro-indígena para promover a elevação espiritual e resgatar a cultura alimentar”, explica Iza. Hoje ela adota seus conhecimentos na preparação de pratos principalmente com frutos do mar, legumes assados, frutas, coco, usando folhas de bananeira, taioba e outras para assados em parrilhas. As folhas transmitem sabor e aromas muito particulares aos alimentos.

Ela promove a culinária ancestral, buscando as bases da cozinha e os temperos de família. Mas é enfática quanto ao ingrediente principal: o sentimento positivo que adiciona a tudo o que faz.

“Minhas receitas são bem tradicionais, não há grandes inovações nos ingredientes. Mas o resultado sempre tem que levar quem consome a sentir algo elevado”. É assim que ela anda pelo mundo da gastronomia, já tendo preparado seus pratos para muitas personalidades brasileiras e internacionais.

Sobre Iza Souza

Iza é nascida em Itagimirim e reside em Trancoso, Sul da Bahia.

Em 2006, formou-se como professora com licenciatura em biologia e somente aos 40 anos iniciou carreira como cozinheira, formada pelo Senac Porto Seguro. Sua paixão é trabalhar como pesquisadora da cozinha afro-indígena em Porto Seguro (comensalidade da cozinha Pataxó e cozinha caiçara) e Cozinha de Santo.

Especialista em frutos do mar, cozinha baiana e cozinha contemporânea. Atua como personal chef desde 2007 atendendo em residências de alto padrão e como consultora de bares e restaurantes. Atua auxiliando os donos de comércio de alimentação a encontrarem a sua verdadeira raiz. Vencedora do Prêmio Dólmã pela Bahia em 2021.

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