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Um dos alimentos mais saborosos da Páscoa cristã é o tòrtano ou tortâno (acentos de pronúncia). Trata-se de um grande pão rústico, o pão de linguiça, típico de Nápoles. Leva farinha de trigo, banha de porco (cerca de 100 gramas por quilo) e pesa mais de 3 quilos. Tem o formato de argola, ou seja, de rosca, com um furo no centro; e o recheio de salame, mortadela, torresmo e, no mínimo, um tipo de queijo. No Brasil, sofreu simplificação: usa-se habitualmente linguiça calabresa, mais fácil de encontrar, e frequentemente mozzarella. Sua massa é úmida e dá água na boca quando vai à mesa em fatias grossas e substanciosas. Qual a razão de ser um alimento de Páscoa? Seu formato de argola, que evoca a coroa de espinhos com a qual os romanos torturaram Jesus, antes da crucificação.

O tortano chegou a São Paulo com os imigrantes napolitanos, no início do século passado. Mas, ao contrário da pizza, outra especialidade dos imigrantes meridionais, praticamente desapareceu. Vicente Raiola (1933-2014), neto de italianos da província de Nápoles, um dos antigos donos da importadora de conservas alimentícias Irmãos Raiola, testemunhou o declínio. “Na minha família, deixou de existir há muito tempo”, relatava. Antes que sumisse, rebatizaram-no de pão ou rosca de linguiça. Nos últimos anos, porém, começou a recuperar o prestígio. No final de março, a padaria e restaurante Le Pain Quotidien, de São Paulo, lançou o seu pão de linguiça em um evento da marca, com excelente repercussão. Também ensinou a prepará-lo na unidade de Vila Madalena.

Na Itália, há um pão assemelhado ao tortano denominado casatiello. Mas existem ligeiras diferenças entre ambos. A primeira é o modo de utilizar os ovos. São colocados crus e inteiros no casatiello; no tortano, vão cozidos e cortados em pedaços, distribuídos na massa junto com o salame e o queijo. Hoje, os napolitanos tendem a considerá-las preparações irmãs. Até a “Grande Enciclopedia Illustrata della Gastronomia” (Selezione dal Readers’s Digest, Milão, 2000) julga-os “similares”. Há inúmeras variantes de tortano: familiares, locais e regionais. Mesmo na Itália, mitos trocam o recheio de salame por presunto cozido e dadinhos de mortadela ou juntam ambos os ingredientes.

Em São Paulo, os imigrantes preparavam inicialmente o tortano com a mesma destinação da terra natal: o almoço de Páscoa. Saboreavam-no na mais antiga e importante festa cristã, junto com a pastiera di grano – a torta doce recheada de ricotta, grãos de trigo integral e fruta cristalizada -, que continua a ser a principal sobremesa da comemoração. Hoje, consomem-no o ano inteiro. Até prova em contrário, o tortano foi reintroduzido em São Paulo pelos Tarallo (Francesco, Giovanni, Speranza e Antônio), que chegaram na cidade em meados do século XX. Comercializaram-no a partir de 1958, quando abriram a Pizzaria Speranza, atualmente com matriz na Rua 13 de Maio, 1004, no Bixiga, um dos bairros que receberam o maior número de imigrantes italianos – os outros foram o Brás, Mooca e Belenzinho. Principais mudanças feitas pelos Tarallo na receita original: justamente a troca do salame pela linguiça calabresa e o costume de prepará-lo o ano inteiro, não só para a Páscoa.

Apesar de até agora manter a receita secreta, a ponto de ter sido a única da família não revelada no livro “Speranza 60 anos” (DBA Editora, São Paulo, 2018), a pizzaria acabou imitada pela concorrência. Mesmo assim, poucos fazem um tortano ítalo-paulistano tão bom. O truque dos Tarallo é assá-lo com a massa tradicional, ou seja, combinando farinha de trigo, fermento biológico, banha de porco, muita linguiça calabresa, queijos mozzarella, parmesão e o que denominam “segredinhos”.

Um é incorporar uma porcentagem igualmente não revelada de pasta di riporto, a massa de pizza não assada no dia anterior, que já se encontra em processo de levedação avançada. O resultado é um tortano de casca crocante e miolo firme, porém macio. A Speranza assa mensalmente quase 1.4 tonelada do seu pão de linguiça na matriz da Rua 13 de maio, e nos endereços de Moema e do delivery de Santana.

O tortano faz tanto sucesso que, entre as décadas de 1960-70, as grandes pizzarias e sobretudo as boas padarias ítalo-paulistanas a seguiram. Primeiro, foi a Basilicata Pão Italiano, da Rua Treze de Maio, 596, fundada em 1914 por um lucano (natural da região da Basilicata ou Lucânia). Coincidentemente, situa-se a poucos metros da matriz da Pizzaria Speranza. Depois, veio a Padaria São Domingos, da Rua São Domingos, 330, aberta em 1913 por um calabrês. Não por acaso, ambas se localizam no Bixiga. O tortano de ambas tem alta qualidade.

A São Domingos merece registro à parte. Vende o seu excelente pão de linguiça na loja junto à padaria e para uma centena de pizzarias e restaurantes de culinária italiana em São Paulo, além da clientela fora da cidade. Simultaneamente, da mesma forma que a Basilicata, faz uma rosca calabresa, que pode incorporar apenas linguiça ou só torresmo e provolone, ou os três recheios juntos, constituindo preparação distinta, pois a massa é de pão italiano.

A palavra tortano derivaria de torta-no, no sentido de que não se trata de uma torta. Já casatiello viria do nome napolitana de queijo (cacio, de onde saiu cas’ e finalmente casatiello). Como dissemos, trata-se de um dos componentes enriquecedores da especialidade. Há também uma versão doce do casatiello, feita com ovos, açúcar, banha de porco, tendo na cobertura os famosos confeitos coloridos napolitanos (os deliciosos diavulilli). Também resulta ótimo.

Falamos de um alimento elaborado pelo menos desde o século XVII. Confirma-se sua antiguidade no livro “O Pentamerão” (“Il Pentamerone”), também conhecido pelo subtítulo “O Conto dos Contos” (“Lo Cunto de li Cunte”), publicado em napolitano com o título “O conto dos contos ou entretenimento dos pequenos” (“Lo Cunto de li Cunti Overo lo Trattenemiento de Peccerille”). Na verdade, destinava-se principalmente ao entretenimento da corte; depois, às crianças.

Seu autor foi Giambattista Basile (1566-1632, nascido perto de Nápoles, escritor pioneiro dos contos de fada na Europa e soldado mercenário a serviço da República de Veneza. O livro contém histórias clássicas recolhidas na tradição popular, entre as quais “Cinderela” ou “A Gata Borralheira” (“La Gatta Cenerentola”) e “A Bela Adormecida” (“La Bella Addormentata nel Bosco”). Posteriormente, o francês Charles Perrault e os alemães Irmãos Grimm, Jacob e Wilhelm, recontaram com modificações histórias inspiradas na obra de Giambattista Basile, reconhecendo a influência dele.

Em “Cinderela”, um dos contos de fadas mais populares do mundo, o autor italiano descreve as festas dadas pelo rei para encontrar a garota maltratada pela madrasta e de identidade desconhecida por ele, pela qual se apaixonara, que ao fugir de um baile real perdera o sapato de cristal: “E veio o dia destinado, oh meu bem: que bom apetite e que falatório se fez! De onde vieram tantas (…) casatielle?”. A “Cinderela” de Giambattista Basile difere um pouco das versões que circularam posteriormente. Relata, por exemplo, que Cinderela matou a madrasta cruel deixando a tampa de uma arca cair em cima dela.

Os imigrantes italianos expandiram a panificação no Brasil. Sobretudo, criaram receitas inovadoras. O pão italiano, de casca crocante, miolo ao mesmo tempo firme e macio, leve acidez no sabor, é hoje unanimidade nacional. Nos bairros que ocuparam em São Paulo, os imigrantes contaram no início com a parceria de padarias de portugueses e espanhóis, cujos fornos utilizaram para assar os seus pães e a pizza. Mas logo tiveram fornos em casa e abriram as próprias padarias. Duas remanescentes daquela época são as centenárias São Domingos e Basilicata.

Convém lembrar ainda a Panetteria Italianinha, da Rua Rui Barbosa, 121, no Bixiga, aberta em 1896 como o nome de Lucânia, em homenagem à região de origem de Felipe Poncio, seu fundador. E a Padaria 14 de Jullho, na Rua Quatorze de Julho, 92, no Bixiga, aberta em 1897 por Raffaelli Franciulli, nascido em Santa Maria di Castellabate, a 120 quilômetros de Nápoles – um mecânico que chegou ao Brasil e virou padeiro porque encontrou poucos automóveis para consertar.

Também não se pode esquecer a Treze de Maio Panificação e Massas, inaugarada em 1917 pelo calabrês Antonio Mantello, no velho Bixiga, agora instalada na Avenida dos Carinás, 535, em Indianópolis, e controlada por um ramo da família da Basilicata. Qual a padaria desse elenco famoso que faz o melhor pão em São Paulo? Quem de fato as conhece vota pelo empate. Benditos padeiros italianos!

Pão de linguiça, o nosso tortano

Rende 1 pão que pode ser dividido em 8 a 10 porções.

Ingredientes

MASSA

.500g de farinha de trigo 00

.100g de banha de porco

.280ml de água

.2 colherinhas (café) de fermento biológico seco

.2 colherinhas (café) de sal fino

.Pimenta-do-reino preta moída na hora a gosto

.Azeite extravirgem de oliva o quanto baste (para a finalização)

RECHEIO

.500g de linguiça calabresa

.150g de queijo gruyère

.50g de queijo parmesão

Modo de preparo

MASSA

1.Na tigela de uma batedeira planetária, usando o gancho (ou misturando à mão, se preferir) coloque os ingredientes da massa e bata bem, até obter um composto liso e homogêneo.

2. Em uma segunda tigela, coloque a massa (para a primeira levedação) em um lugar morno, coberta com papel filme, por no mínimo 2 horas, até dobrar de tamanho.

RECHEIO

3. Enquanto a massa leveda, prepare o recheio.

4.Corte a linguiça em finas rodelas e o queijo em pequenos cubos.

5. Rale o queijo parmesão

Finalização

6. Depois da massa levedada, estenda-a na máquina de macarrão ou no rolo manual, esticando-a até obter um retângulo de espessura fina.

7. Vá distribuindo sobre a massa as rodelas de linguiça, os cubos do queijo gruyère, o parmesão ralado e enrole a massa no recheio, como se fosse um rocambole.

8. Unte com azeite uma fôrma grande e redonda, furada no centro. Acomode a massa ali, delicadamente. Coloque a fôrma em um lugar morno, por 1 hora (segunda levedação).

9. Passado esse tempo, pincele a superfície da massa com azeite de oliva e leve-a ao forno preaquecido a 180°C, por cerca de 1hora, cuidando para não queimar.

10. Deixe esfriar antes de desenformar.

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