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Por José Antônio Dias Lopes

Ao contrário do que muitos acreditam, a coxinha, salgadinho mais apreciado no Brasil, tem ascendência europeia.

Uma entrevista apresentada dia 17/12 na TV Cultura de SP, aliás muito bem feita, repetiu que a coxinha de galinha ou frango, o salgadinho favorito da população nacional, surgiu no interior do município de Limeira, no Centro-Leste do estado de São Paulo. A invenção teria ocorrido na histórica Fazenda Morro Azul, construída no início do século XIX, com projeto inspirado em palácios e edificações europeias. Já contestei a atribuída primazia de Limeira, aqui no Facebook e nas revistas “GULA” e “GOSTO”. Entretanto, motivado pela entrevista na TV Cultura de SP, farei isso novamente.

Muitos sustentam que a coxinha foi criada na Fazenda Morro Azul para um dos três filhos da Princesa D. Isabel. Ele teria sido “despachado” para o interior paulista. Devia  permanecer distante da família, pois sofria de retardo mental. “Sua mãe não queria mostrar o filho deficiente à corte do Rio de Janeiro”, sustenta a versão. “Além disso, era enjoado à mesa. Só comia coxas inteiras de galinha, fritas e sem empanar. Não havia ave que chegasse”.  A fim de contornar o problema, a cozinheira da Fazenda Morro Azul, hoje localizada no município de Iracemápolis, desmembrado de Limeira, encontrou uma solução.

Passou a abater apenas uma ave por dia, ou seja, a desfiar toda sua carne, dividi-la em porções, envolver em massa, moldar no formato de pera e fritar em banha quente. O rapaz gostou tanto do salgadinho que comeu sem parar! Acrescenta-se ao relato que sua mãe conheceu a “novidade” quando visitou o município, em 1878 ou 1886, aderindo imediatamente ao cordão de fãs. Movida certamente por essa história, a Secretaria de Cultura de Limeira criou a Festa da Coxinha, com diversas receitas do quitute e atrações artísticas paralelas. Neste ano, a terceira edição do evento aconteceu nos dias 14, 15, 16 e 17 de setembro, no Parque Cidade, com numerosa assistência.

O alegado pioneirismo de Limeira encontra-se registrado na “Enciclopédia Livre Wikipédia”. Foi ainda contado no livro “Histórias e Receitas – Sabor, Tradição, Arte, Vida e Magia” (Sociedade Pró-Memória de Limeira, 2000), escrito por Maria Nadir Galante Cavazin. Entretanto, a versão colide com uma realidade histórica: os três filhos da Princesa D. Isabel desfrutavam de excelente saúde mental e física. Eram os príncipes D. Pedro de Alcântara, D. Luís Maria Filipe e D. Antônio Gastão Filipe. Moravam com ela no Paço Isabel, atual Palácio da Guanabara. Ali residiram até a Proclamação da República, ocorrida a 15 de novembro de 1889.

Outra versão igualmente registrada pela “Enciclopédia Livre Wikipédia” assegura que a coxinha nasceu na Grande São Paulo durante a industrialização do estado, turbinada  entre as décadas de 1930 e 1990. Teria surgido como substituta mais barata da coxinha frita vendida nas portas das fábricas. Espalhando-se pelo Brasil, o salgadinho tornou-se popular no Rio de Janeiro e no Paraná na década de 1950, sendo preparado tanto conforme a antiga receita, como sofrendo alterações. Essa segunda hipótese, porém, esbarra em outro fato histórico. A Padaria Santa Tereza, aberta em 1872, ou seja, há 151 anos, que funciona até hoje na Praça Dr. João Mendes, 150, no Centro Histórico de São Paulo, prepara coxinhas desde a sua fundação.

Estou convencido de que a coxinha tem origem francesa e desembarcou no Brasil em 1808, quando a rainha D. Maria I, e seu filho, o príncipe regente D. João, escapando das tropas de Napoleão que invadiram Lisboa, instalaram-se com a corte portuguesa no Rio de Janeiro. Portanto, sua ascendência é europeia. A família real lusitana já a conhecia e a Princesa D. Isabel talvez a saboreasse desde criança. Deve ter sido introduzida em Portugal (onde até hoje a preparam) pelo chef francês Lucas Rigaud, cozinheiro de D. Maria I. A veteraníssima Confeitaria Colombo, da Rua Gonçalves Dias, no Centro do Rio de Janeiro, fundada em 1894, prepara-a desde a inauguração, ou seja, há 129 anos. Da capital carioca, teria sido transladada para São Paulo por alguma antiga padaria, firmando-se definitivamente na cidade a partir da sua industrialização. É certo que foi vendida aos operários nas entradas das fábricas onde trabalhavam. 

Em 1780, o chef de D. Maria I lançou em Lisboa o livro  “Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha”, reeditado em 1999 pela Colares Editora, de Sintra, Portugal. Nas páginas 107 e 108 da última edição aparece a receita das “coxas de frangas ou galinhas novas”. Como Rigaud manda prepará-la? Recomenda desossar 10 ou 12 aves, conservando a pele, e rechear com um “picado fino”. Depois, mergulha-se no béchamel (molho branco) ligado com gemas. Fecha-se com barbante, passa-se em ovos batidos, pão ralado fino e frita-se em banha. Qualquer semelhança com o salgadinho brasileiro não parece mera coincidência.

 “Não tenho a menor dúvida de que a coxinha tem origem europeia”, afiança em São Paulo o chef franco-brasileiro Laurent Suaudeau. “Basta consultar o clássico “L’Art de la Cuisine Française au Neuvième Siécle – Traité Elementaire e Pratique”. Trata-se de livro publicado em Paris, na primeira metade do século XIX, pelo chef dos chefs Marie-Antoine Carême (1784-1833), considerado o maior cozinheiro de todos os tempos e festejado pela codificação da haute cuisine (alta cozinha) francesa. Nas páginas 268, 269 e 270, ele ensina a fazer coxinha, denominando-a “croquette de poulet” (croquete de frango) e aconselhando-a moldá-la “en forme de poires” (em forma de peras). “Obviamente, a receita acabou adaptada no Brasil”, observa Laurent. “Do ponto de vista técnico, porém, é a mesma”.

No capítulo “As Aves Que Aqui Gorjeiam”, do livro “Comidas, Meu Santo!” (Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1964), o inspirado dramaturgo e escritor campineiro-carioca Guilherme de Figueiredo, autor de obras muitas vezes com abordagem divertida (“Tratado Geral dos Chatos”, por exemplo), acreditava nessa ascendência: “Quanto à coxinha de galinha, esta sim é seguramente de origem francesa. Hoje, carioquíssima”. Em seguida, faz um comentário divertido: “A melhor é a tostada ao sol, em Copacabana”.

Há muitos tipos de coxinha no Brasil, da grande à mini. Ela pode ser feita com a coxa inteira. Geralmente, porém, leva carne de frango temperada, cozida e desfiada. Vale a imaginação criadora. Existe a opção de incorporar batata e béchamel (farinha de trigo em manteiga, diluindo essa mistura com leite), para torná-la cremosa; e também uma delícia, o requeijão cremoso, especialmente Catupiry. Esta última variação seduz enorme legião de gulosos, a começar pelo talentoso jornalista, cronista e escritor Humberto Werneck, um mineiro radicado em São Paulo. Em sua descrição, “faz o queijo vazar queixo abaixo”. Fã da coxinha, recomendo as melhores de São Paulo, obviamente na minha opinião particular. Cito-as aqui pela ordem alfabética e não da excelência: Dona Onça, Frangó, Ofner, Rosima, Santa Tereza (a veterana, onde segundo a lenda teria sido lançada a coxa creme), Veloso e Yokoyma. Há outras, que deixo de citar por não conhecer

Uma pesquisa do instituto Datafolha confirmou há algum tempo que a coxinha é o salgadinho preferido pela maioria dos paulistanos, ou seja, por 34% da população. Vence a esfirra (12%) e o pastel (10%). Outros petiscos saboreados pela população ficaram atrás: rissole, pão de queijo, quibe, empada e croquete. Certo, a coxinha veio da França. Mas o jornalista norte-americano Matthew Shirts, que vive no Brasil desde 1976, identificou no imperdível salgadinho a presença da “alma paulistana”. Ele publicou essa conclusão na VEJA São Paulo, de 18 de julho de 2012: “A coxinha é, para mim (e para muitos, desconfio), uma das madeleines da cultura paulistana, Referiu-se ao biscoitinho em forma de concha, originário da comunidade francesa de Commercy, imortalizado na obra “Em Busca do Tempo Perdido”, do genial escritor Marcel Proust (1871-1922).

Receita de coxinha creme, que o chef Renato Freire preparava quando trabalhava na Confeitaria Colombo, do Rio de Janeiro:

Rendimento: 10 unidades

Ingredientes:

GALINHA E CALDO

.10 pernas inteiras (coxa e sobrecoxa) de galinha

.1 xícara (chá) de alho-poró picadinho

.1/2 cebola picadinha

.1 cenoura picadinha

.1 xícara (chá) de aipo picadinho

.2 folhas de louro

.20 grãos de pimenta-do-reino inteiros

.Água o quanto baste

.Sal e pimenta-do-reino moída na hora a gosto

CREME

.1 1/2 l de caldo de galinha

.1/2 l de leite integral

.150 g de farinha de trigo

.150 g de amido de milho

.4 gemas

.Sal a gosto

EMPANAR E FRITAR

.4 claras ligeiramente batidas

.Farinha de trigo o quanto baste

.Farinha de rosca o quanto baste

.Óleo abundante para fritar

Modo de preparo

GALINHA E CALDO

1.Limpe bem as pernas das galinhas tirando as peles e as cartilagens. Raspe com uma faca afiada o osso da ponta da coxa para dar um bom acabamento. Tempere com sal e pimenta-do-reino moída.

2.Reserve por pelo menos uma hora.

3.Coloque os demais ingredientes em uma panela grande e leve ao fogo até ferver. Nesse momento, adicione as pernas (coxas e sobrecoxas) que estavam reservadas. É importante que elas fiquem bem submersas no líquido. Cozinhe-as em fogo baixo, sem ferver, até ficarem macias. Retire-as do caldo e deixe-as amornar. Em seguida, coloque-as na geladeira até esfriarem.

4.Coe o caldo do cozimento e retire o excesso de gordura que ficou na superfície.

CREME

5.Em uma panela, leve ao fogo o caldo do cozimento da galinha com metade do leite.

6.Em um recipiente, misture o restante do leite frio com a farinha de trigo, o amido de milho e as gemas. Passe essa mistura por uma peneira e despeje sobre o caldo fervente. Mexa vigorosamente com um batedor de arame até formar um creme liso e espesso. Ajuste o sal, se necessário.

7.Retire a panela do fogo e mexa o creme para baixar um pouco a temperatura. Segure cada perna pela extremidade do osso limpo e passe no creme para formar uma película. Repita o procedimento com todas as pernas e deixe esfriar totalmente.

EMPANAR E FRITAR

8.Passe as pernas na farinha de trigo, depois nas claras e finalmente na farinha de rosca. Deixe na geladeira por 15 minutos.

9.Frite-as em óleo abundante a 160ºC até ficarem douradas e sequinhas.

Antônio Dias Lopes é cronista gastronômico e colaborador do Food Forum News. Entre em contato conosco para projetos editoriais sobre temas gastronômicos com o autor.

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