capelletti - crédito foto marcomeyer
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Por José Antônio Dias Lopes

A provável inspiração do cappelletti à romanesca, prato representativo da cozinha cantineira de São Paulo, de autoria ou coautoria do saudoso restaurateur Giovanni Bruno.

Em recente viagem a Roma, para uma palestra sobre a cozinha ítalo-brasileira, fizemos uma importante descoberta a respeito de uma das receitas mais deliciosas da culinária cantineira paulistana: o cappelletti à romanesca (o certo seria alla romanesca). Foi um dos pratos mais elogiados no banquete do dia 21 de fevereiro, oferecido pelo diplomata Renato Mosca de Souza, chefe da delegação brasileira instalada em Roma. O jantar solene e formal, do qual participaram 150 convidados, realizado no Palazzo Pamphilj localizado na Piazza Navona, comemorou o sesquicentenário da imigração italiana no Brasil.

No cardápio, informou-se aos presentes que a receita do cappelletti à romanesca foi desenvolvida em São Paulo pelo imigrante Giovanni Bruno (1935-2014). Na época, ele era estrela do serviço de salão do restaurante Gigetto, no centro da capital paulista, aberto em 1938. Frequentavam o lugar artistas e diretores do teatro, da televisão e do cinema, teatrólogos, cineastas, escritores, jornalistas, radialistas, profissionais liberais, empresários, executivos e boêmios incorrigíveis.

Com a simpatia e a espontaneidade que o caracterizavam desde os tempos de jovem garçom, ele contou à jornalista e pesquisadora gastronômica Silvana Azevedo, de São Paulo, e repetiu a este cronista, como nasceu o cappelletti à romanesca. Antes, porém, um esclarecimento. A palavra cappelletti (plural) designa aquelas massinhas recheadas e moldadas no formato dos antigos chapéus (cappelletti) medievais, com uma faixa em volta da testa. Comprova-se sua antiguidade na “Cronaca di Fra Salimbene de Adam da Parma”, do século XIII, um franciscano que estudou história da Itália e da França. Os tortellini são similares, porém menores, diferem dos cappelletti na dobra final da massa. Imitam o umbigo delicado e imaginário de Vênus, deusa do amor e da beleza.

Crédito: Gladstone Campos

O cappelletti à romanesca de Giovanni Bruno é um prato que vai à mesa com um molho à base de creme de leite ou molho branco, presunto cozido cortado em dadinhos ou picado, ervilha em lata e champignon de Paris em conserva. O molho, segundo seu autor ou coautor, referiu-se à capital da Itália: romanesco significa romano. Silvana Azevedo publicou o relato de Giovanni Bruno na tese de mestrado que defendeu em 2016, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, intitulada “O Léxico da Cozinha Italiana de São Paulo”.

No início de 1954, um cliente do Gigetto do qual Giovanni Bruno tornou-se amigo, viajou entre o Nordeste e o Centro da Itália. Voltando ao Brasil, descreveu entusiasmado uma massa recheada com carne moída que havia conhecido. Mas não lembrava seu nome, nem a localidade onde a saboreara. O molho combinava panna (creme de leite fresco), ervilhas, presunto cozido e champignon de Paris. O cliente era Pedro Rodrigues, diretor da empresa Elevadores Atlas, na Avenida do Estado, no bairro do Cambuci. Quando ele saiu do restaurante, Giovanni Bruno foi à cozinha e propôs ao cozinheiro Luiz reproduzir o prato.

O Gigetto tinha cappelletti no cardápio, mas sempre in brodo (em caldo de frango), ou melhor, servido como sopa. O cozinheiro topou o desafio e os dois começaram a experimentar. Um mês depois, Pedro Rodrigues reapareceu no Gigetto e perguntou ao amigo: “O que vou comer hoje?”. Giovanni Bruno respondeu orgulhoso: “Fizemos aquele cappelletti coberto por creme de leite”. Acrescentou que, como o molho ficou um pouco “solto”, a preparação foi colocada no forno, “para enxugar”. “O cliente ficou louco”, recordava Giovanni Bruno.

No banquete da embaixada de Roma, um senhor filiado à Accademia Italiana della Cucina levantou-nos a hipótese de Gionanni Bruno ter buscado inspiração no tortellini alla boscaiòla. Explicou ser receita tradicional no Nordeste e Centro da Itália, talvez das montanhas entre a Emilia-Romagna e a Toscana. Tem duas variantes principais e algumas interpretações diferentes. Em ambas está presente o cogumelo, preferencialmente porcini ou finferli, frescos, secos ou em conserva, segundo o gosto de cada pessoa. Uma receita usa ervilha, creme de leite fresco ou béchamel, presunto cozido ou pancetta defumada, noz-moscada, queijo parmesão e cogumelo. Na outra vão ervilha, tomate ou passata de pomodoro, linguiça “sfumata” no vinho branco ou então presunto cozido, noz-moscada, queijo parmesão e o onipresente cogumelo.

Enriquecem massas como penne rigate e tortellini; ou carnes tipo scaloppine alla boscaiola e involtini idem. O primeiro molho é muito assemelhado ao de Giovanni Bruno. Fomos procurar o prato em livros e nas redes sociais. Encontramos a receita em vários lugares, com certas diferenças entre si. Segundo o site do Consorzio Italiano Tutela Mortadella, o recheio dos tortellini deve ter mortadela (recomendação em causa própria, é claro), champignon de Paris, creme de leite fresco, presunto cortado em dadinhos, cebola, queijo parmesão, azeite extravirgem, sal, pimenta e noz-moscada. O nome alla boscaiòla deriva de boscaiolo, lenhador, lenheiro, mateiro.

Giovanni Bruno trabalhou 17 anos no Gigetto, onde arrumou emprego em 1950, recém-chegado da Itália. Começou nos ofícios de lavador de verduras, descascador de batatas e empilhador de garrafas, mas trabalhou a maior parte do tempo no Gigetto como garçom. Deixou a casa em 1967, para ser sócio ou dono de restaurantes: primeiro da Cantina Júlio, depois da Giovanni Bruno e finalmente de Il Sogno di Anarello, sempre cercado pelo apreço da clientela. Uma das suas características era escolher o prato que o cliente iria comer. Ele narrou sua trajetória vitoriosa no livro “Giovanni Bruno…aos nossos momentos”, com texto de Angelo Iacocca (Depoimento Editorial, São Paulo, 1994).

Por que um italiano do sul, como ele, nascido na pequena comuna de Casalbuono, na região da Campânia, notabilizou-se por um prato de massa recheada, típica do Centro do seu país, que provavelmente só veio a conhecer no Brasil? Até a primeira metade do século XX, os italianos de uma região desconheciam as receitas da outra. Os do Sul introduziram em São Paulo massas como spaghetti, fusilli, linguine, orecchiette e a lasagna, com os molhos de pomodoro e basilico, aglio e olio e peperoncino, ragù etc. Foram apresentados no Brasil, pelos imigrantes procedentes do Nordeste, do Centro e do Norte da Itália aos cappelletti, tortellini e agnolotti; às massas frescas, de fio e all’uovo (com ovo), trenette, fettuccine e molhos que vão do ragù alla bolognese ao pesto genovês.

Em sua tese de doutorado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, em 2009, com o trabalho “Sabores e Memórias – Cozinha Italiana e Construção Identitária em São Paulo”, a professora Janine Collaço incluiu um depoimento de Alfredo Di Cunto que, em 1935, abriu com três irmãos uma padaria na Mooca e formou o conglomerado alimentício com o nome familiar. Ele nasceu na Campania, a mesma região de Giovanni Bruno. “Então, naquele tempo só conhecíamos o macarrão seco (…)”, lembrou Alfredo Di Cunto. Massas frescas e recheadas não eram comuns, como no Centro da Itália. Se bem que há canneloni no Sul e lasagna é prato de dia de festa em toda a Campania.

Na verdade, Alfredo Di Cunto devia saber da existência de pelo menos uma massa espetacular fresca: os fusilli artesanais, longos ou curtos (não os helicoidais dos supermercados, chamados de parafusos), moldados em arame fino ou agulha de croché, que deixam um furinho no centro. Só há uma explicação para Giovanni Bruno e o cozinheiro do Gigetto terem feito o cappelletti à romanesca: souberam interpretar a descrição do cliente especial que havia saboreado na Itália o tortellini alla boscaiòla. Mais um legado italiano.

CAPPELLETTI À ROMANESCA

Rende 4 porções

INGREDIENTES

MOLHO

. 50g de farinha de trigo

. 200 ml de leite

. 200 ml de creme de leite fresco

. 100 g de presunto cozido (magro) em cubinhos

. 75g de ervilha em conserva

. 100 g de champignons de Paris em conserva

. Sal a gosto

CAPPELLETTI

. 500 g de cappelletti frescos (com recheio à base de carne)

. Queijo parmesão ralado, para polvilhar

. Sal a gosto

PREPARO

MOLHO

1. Em uma panela, dissolva a farinha de trigo no leite. Junte o creme de leite fresco e leve ao fogo brando, sempre mexendo, até ferver e encorpar. Nesse momento, adicione o presunto, em seguida as ervilhas e os champignons.

2. Misture bem, tempere com sal e deixe por mais alguns instantes no fogo. Retire e reserve em lugar aquecido.

CAPPELLETTI

3. Em panela grande, cozinhe os capelletti em

bastante água fervente com sal. Cuide para não passarem do ponto, amolecerem demais e se abrirem. Escorra-os e passe-os para um recipiente que possa ir ao forno.

FINALIZAÇÃO

4. Junte delicadamente o molho à massa, polvilhe o queijo parmesão ralado e leve ao forno rapidamente, apenas para gratinar.

5. Sirva imediatamente.

Receita preparada pelo chef Allan Vila Espejo, de São Paulo, SP, “doutor” em cozinha cantineira.

IMAGENS

1) Cappelletti à romanesca (Foto do craque Gladstone Campos)

2) Giovanni Bruno na capa do seu livro de memórias (Divulgação)

Dias Lopes é jornalista e escritor especializado em gastronomia histórica e colaborador do Food Forum News. Entre em contato conosco para projetos editoriais com o autor sobre temas de história da gastronomia.

2 Comentários
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