A propósito do aniversário de São Paulo, que hoje completa 468 anos de fundação, lembramos com água na boca da coxinha de frango ou de galinha. Alguns textos sobre esse petisco emblemático da cidade, inclusive o publicado pela acessadíssima “Wikipédia – A Enciclopédia Livre”, afirmam que foi criado na grande cidade brasileira e teve o consumo multiplicado no seu período de industrialização. Bem-aventurada a coxinha! Nutritiva, substanciosa e calórica, capaz de substituir uma refeição fora de casa, destronou a homônima de galinha vendida nas portas de fábricas. Não por acaso, a Padaria Santa Tereza, aberta em 1872, ou seja, há 150 anos, ainda hoje na Praça Doutor João Mendes, no Centro de São Paulo, prepara-a desde a fundação. Outros escritos dizem que a coxinha surgiu no Rio de Janeiro e de lá foi trazida para nossa cidade.
Entretanto, ela não nasceu em nenhum desses locais: foi criada na França. Apesar disso, São Paulo tem o direito de orgulhar-se do seu petisco crocante por fora e internamente tenro, que agrada meio mundo. Até porque o converteu em porta-bandeira de seus bares, padarias, lanchonetes, confeitarias e, quando pequena, de festas, buffets e couverts de restaurantes. Coxinha com cerveja gelada ou chope bem tirado vira prazer. Em São Paulo, supera em popularidade o bolinho de bacalhau, o pastel, a empadinha e o quibe frito. A cidade acredita prepará-la como nenhuma outra. O Rio de Janeiro tem outras paixões mais fortes. Prefere o bolinho de bacalhau, o pastel e a empadinha.
Convém reiterar que a coxinha veio da França. “Não tenho a menor dúvida quanto a isso”, afirma em São Paulo o chef franco-brasileiro Laurent Suaudeau. Sua convicção apoia-se no livro “L’Art de la Cuisine Française au XIXème Siécle – Traité des Entrées Chaudes” (Dentu, Librairie, Palais-Royal, Galerie d”Orléans, Paris, 1844), do parisiense Antonin Carême (1784-1833). Nas páginas 268, 269 e 270, o maior cozinheiro de todos os tempos chama a coxinha de “croquette de poulet” (croquete de frango) e aconselha moldá-la “em forme de poires” (em forma de peras).
“Obviamente, a receita foi modificada no Brasil”, admite Laurent. “Do ponto de vista técnico, porém, é a mesma”. O dramaturgo e escritor Guilherme Figueiredo, um carioca nascido em Campinas, São Paulo, referendou a convicção de Laurent. No livro “Comidas, Meu Santo! (Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1964), garantiu sem rodeios: “Quanto à coxinha de galinha, esta sim é seguramente de origem francesa”. Mesmo assim, Figueiredo achava que ela virou “carioquíssima”.
Tudo indica que a receita francesa desembarcou no Brasil em 1808, quando a rainha portuguesa D. Maria I, e seu filho, o príncipe regente D. João, escapando das tropas de Napoleão que invadiram Lisboa, instalaram o governo no Rio de Janeiro. A corte lusitana já saboreava a coxinha. Acredita-se que o petisco foi introduzido em Portugal (onde hoje perdeu o antigo prestígio popular) pelo francês Lucas Rigaud, cozinheiro de D. Maria I. Em 1780, ele lançou em Lisboa o livro “Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha”, reeditado em 1999 pela Colares Editora, de Sintra, Portugal.
Nas páginas 107 e 108 da edição mais recente aparece a receita das “coxas de frangas ou galinhas novas”. Eis a receita. Desossam-se 10 ou 12 aves, conservando a pele, e se recheia com um “picado fino”. Mergulha-se no béchamel (molho branco) ligado com gemas. Fecha-se com barbante, passa-se em ovos batidos, pão ralado fino e frita-se em banha.
Na contramão dessa história, a cidade de Limeira, no interior de São Paulo, reivindica a paternidade da coxinha baseada em uma lenda local. Sustenta que o salgadinho debutou no final do século XIX em uma fazenda do interior do município, para alimentar um dos filhos da princesa D. Isabel. O rapaz era mantido ali, longe da família, por ser deficiente mental. “A mãe não queria mostrar o filho doente à corte do Rio de Janeiro”, garante a versão. “Por isso, entregou-o aos cuidados de amigos de Limeira.”
Enjoado à mesa, o garoto só comia coxas fritas, sem empanar. Não havia galinha que chegasse. Afinal, cada ave fornece apenas duas coxas. Certo dia, a cozinheira da fazenda de Limeira encontrou uma solução. Dispondo apenas de uma galinha, desfiou toda a sua carne, dividiu em porções, envolveu em massa, moldou no formato de pera e fritou. O rapaz gostou tanto que comeu sem parar! Diz-se que sua mãe conheceu a novidade quando o visitou na cidade, em 1878 ou 1886, aderindo ao cordão de fãs.
O relato saiu no livro “Histórias e Receitas – Sabor, Tradição, Arte, Vida e Magia” (Sociedade Pró-Memória de Limeira, 2000), escrito por Maria Nadir Galante Cavazin. Mas não procede, até porque os três filhos de D. Isabel desfrutavam de excelente saúde mental e física. Eram os príncipes D. Pedro de Alcântara, D. Luís Maria Filipe e D. Antônio Gastão Filipe. Moravam com ela no Paço Isabel, atual Palácio da Guanabara. Ali residiram até a Proclamação da República, ocorrida a 15 de novembro de 1889.
Há três tipos clássicos de coxinha: a creme, a comum e a villerroy. A primeira é feita com a coxa inteira, envolta em creme e empanada. Diverge-se se deve incluir a sobrecoxa para virar refeição completa. A comum leva carne desfiada ou picada na faca. Trava-se novo debate. A carne pode ser moída? Na massa, vai só farinha de trigo e de rosca ou purê de batata? Quanto à villerroy, cujo nome homenageia o marechal homônimo, súdito do rei Luís XV, presta-se só ao aperitivo ou não? E que tal uma camada interna de Catupiry, para o queijo “vazar queixo abaixo”, como descreveu o inspirado jornalista Humberto Werneck, um mineiro radicado há muitos anos em São Paulo?
Como se sabe, trata-se de um salgadinho geralmente feito com massa de farinha de trigo e caldo de galinha, recheado com carne de frango cozida, desfiada ou picada em pedaços pequenos, podendo também levar requeijão Catupiry, colocado junto ao frango. Modelam-no em formato de pera, para, a seguir, empaná-lo em farinha de rosca e fritá-lo em óleo quente. Entretanto, a coxinha comporta inúmeras variações.
A massa às vezes leva batata, mandioca ou abóbora. O recheio pode incorporar peru, pato, pernil suíno, carne bovina, carne seca, siri, milho, palmito, berinjela, jaca, brócolis, farofa. Sem contar as coxinhas qur se autoproclamam vegetarianas e veganas. Ainda temos as doces, recheadas com churros ou goiabada, por exemplo. Ufa!. Afinal, há gosto para tudo, como sentencia o provérbio português. Quem aprecia de fato o salgadinho, porém, rejeita os exotismos e não renega a tradição.
Sua legião de apreciadores é enorme, muitos são figuras públicas. Inclui o publicitário paulista Washington Olivetto, consagrado por algumas das campanhas mais importantes da propaganda brasileira, e envolve seu sequestro por terroristas chilenos, em 2002. Ele permaneceu 53 dias em um cubículo da Rua Kansas, no bairro do Brooklin, da capital paulista, recebendo péssima comida. Ao ser libertado, pediu uma bandeja das elogiadas coxinhas do Frangó, bar tradicional do bairro da Freguesia do Ó.
Matthew Shirts, jornalista norte-americano que escolheu São Paulo para viver e agora se confunde com os nossos, interpretou o gesto de Olivetto. “A coxinha é, para mim (e para muitos, desconfio), uma das madeleines da cultura paulistana”, teorizou. Publicou isso na revista VEJA São Paulo, da Editora Abril, de 18 de julho de 2012. As madeleines são bolinhos à base de farinha de trigo, manteiga, ovos e açúcar, aromatizados com limão ou laranja, em formato de concha de vieira, originários da comunidade de Commercy, na região francesa de Lorraine.
Ficaram mundialmente famosas depois que o escritor Marcel Proust tomou um gole de chá, saboreando uma delas, e foi acometido de um inesperado clarão mental. Recompondo subitamente as lembranças da sua vida, até mesmo as esquecidas, pôs-se a escrever a obra-prima “Em Busca do Tempo Perdido”, composta por sete romances ambientados no bucólico interior da França e na elegante Paris do começo do século XX. Não se sabe se a coxinha operaria o mesmo prodígio, porém seria melhor não duvidar do seu poder de sedução, pois há muita gente louca por ela. Além disso, é gostosa demais! Feliz aniversário, São Paulo!
Coxinha de frango com catupiry
Rende cerca de 70 unidades, dependendo do tamanho.
Ingredientes
RECHEIO
.3 peitos de frango com pele e osso
.2 colheres (sopa) de azeite
.1 cebola grande bem picada
.3 colheres (sopa) de salsinha picada
.Sal e pimenta-do-reino moída na hora, a gosto
MASSA
.2,7 litros de água
.1/2 xícara (chá) de óleo de cozinha
.200 ml de caldo de galinha (use o do cozimento dos peitos de frango do recheio)
.1,45 kg de farinha de trigo especial
.Farinha de rosca para empanas
.Óleo de cozinha para fritar
Finalização
.Requeijão Catupiry o quanto baste
.Farinha de rosca para empanar
.Óleo para fritar
Modo de preparo
RECHEIO
1.Numa panela com água e sal, cozinhe os peitos de frango até ficarem macios,
2.Passe o caldo por uma peneira fina e reserve para o preparo da massa.
3.Descarte a pele, os ossos e a cartilagem do frango. Pique-o em pedaços bem pequenos. 4.Refogue-os no óleo, com acebola e a pimenta. Junte a salsinha apenas no final.
MASSA
5.Numa panela, coloque a água para ferver, em seguida o óleo e o caldo de galinha. Quando borbulhar, acrescente a farinha de uma só vez, mexendo com uma colher de pau até a massa ficar bem cozida e firme.
6.Espalhe a massa em uma superfície e amasse-a até ficar lisa, Reserve.
Finalização
7.Abra um pouco da massa na palma da mão e, com o lado externo da colher, espalhe um pouco do requeijão.
8.Acrescente um pouquinho do recheio e faça movimentos circulares com as mães para fechar as extremidades e dar forma às coxinhas.
9.Empane as coxinhas na farinha de rosca.
10.Numa panela própria para fritura, aqueça óleo suficiente para cobrir as coxinhas e frite-as poucas por vez, até ficarem douradas.
11.Retire-as, deixe escorrer em papel absorvente e sirva-as.
Receita publicada na revista GULA 111, página 27, com a supervisão de Fabiana Badra e Beth Freidenson.
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