imagem com alimentos proteicos gerada por IA
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Por Gus Guadagnini, CEO @ The Good Food Institute Brasil | Alternative Proteins

12 de junho de 2024

Hoje fiquei surpreso em ver uma notícia na capa do UOL – Universo Online , publicada pela Folha de S.Paulo, trazendo a manchete “Hambúrguer Vegetal é Associado a Doença Cardíaca”. A matéria era toda ilustrada por fotos de nuggets e outras carnes vegetais e referenciava um estudo observacional publicado pelo NUPENS. O meu primeiro pensamento, como sempre, foi ler o artigo publicado original e não só a matéria, para tirar minhas próprias conclusões sobre o que a pesquisa apresentou.

Adivinha o que eu encontrei? Logo na tabela 02 do estudo, eles mostram os percentuais de calorias provenientes do grupos de alimentos consumidos pelas pessoas avaliadas. O grupo de carnes vegetais representou apenas  0,2% do total de calorias consumidas pelos participantes do estudo e faziam parte do grupo se alimentando com ultraprocessados de origem vegetal.

A maioria das calorias consumidas veio de produtos açucarados como bolos e biscoitos,  massas e pães industrializados, correspondendo a 20,7% do total de calorias ingeridas na dieta da população avaliada, ou seja 103 vezes maior que a carne vegetal. Notem que os leites e seus derivados de origem vegetal sequer aparecem na tabela.

A matéria, portanto, usou imagens e títulos chamativos para associar os produtos cárneos vegetais ao problema trazido pelo estudo, como se fossem os responsáveis pelos resultados e como se tivessem sido o foco do estudo em questão. Com isso, distorceu os resultados científicos para descredibilizar os produtos plant-based.

Não para por aí: o estudo não considerou analisar a substituição. As carnes vegetais são alimentos que entram na dieta ocupando o mesmo espaço que uma carne animal ocuparia. Então vamos olhar o percentual de calorias fornecidas por produtos de origem animal.

Não surpreendentemente, as carnes ultraprocessadas ocuparam 2,8% das calorias consumidas (ou seja, a representatividade de carne animal foi 14 vezes maior do que a representatividade da carne vegetal). Se incluirmos os derivados de leite animal, os ultraprocessados de origem animal representam 8,8% das calorias consumidas. Ou seja, comparando com o 0.2% de carnes vegetais, é 44 vezes maior.

Assim, mesmo em uma classificação contestável, na qual mesmo as carnes vegetais que não são altas em açúcares, gorduras e sódio foram consideradas ultraprocessadas, a participação dessa categoria nas calorias consumidas é minúscula. O que evidencia que a matéria faz uma afirmação desleal e totalmente desproporcional.

Para referência, um levantamento feito pelo GFI e recentemente conclui que as carnes vegetais oferecem em média menos gordura, menos sódio e menos aditivos do que suas contrapartes de origem animal, além de agregarem fibras e serem zero colesterol.

Esse estudo alvo da matéria, como vocês podem ver, é uma análise observacional não controlada e auto declarada. Ou seja, o estudo considera dados relatados pelas pessoas (sem haver um controle do que elas comeram de verdade) em dois relatos feitos sobre alimentos consumidos em 24 horas não consecutivas. Essa metodologia, portanto, não é suficiente para determinar causalidade. Não dá para dizer que esses alimentos consumidos nessas 48 horas relatadas foram realmente os únicos responsáveis pelas doenças cardiovasculares.

Se fosse possível realmente tomar as conclusões que a matéria tomou (de causalidade), na verdade as proteínas vegetais estão melhorando a dieta geral. Eles representam uma quantidade muito menor de calorias consumidas do que suas contrapartes de origem animal.

A reportagem, porém, não faz essa reflexão, nem dá espaço para um nutricionista não-autor avaliar o estudo e suas implicações.

Sabe o que mais a reportagem não traz? Dados que são amplamente validados pela ciência. Por exemplo: as carnes processadas de origem animal são classificadas pela OMS como Grupo 01 de substância cancerígena, o mesmo grupo que o tabaco e o amianto. Estar nesse grupo significa que a conexão desses alimentos com o câncer já foi indiscutivelmente provada pela ciência. A carne vermelha não processada é classificada como 2A, ou seja, “provavelmente cancerígeno para humanos”.

Além disso, tanto o estudo, quanto os guias nutricionais, como a matéria da Folha ignoram completamente o imenso impacto ambiental que é causado pela produção de carnes e tratam o assunto como uma mera questão nutricional. Também não está certo.

Por exemplo, um relatório muito recente do Banco Mundial listou o que precisa ser feito para que nosso planeta continue habitável. Uma das passagens do relatório é: “Mover-se das dietas atuais para uma dieta que exclui produtos animais poderia reduzir o uso da terra em 76%, as emissões de GEE em 49%, a acidificação em 50%, a eutrofização em 49% e a retirada de água doce em 19%.”

O relatório aponta ainda que as proteínas alternativas (APs) têm o segundo maior potencial de mitigação (6,1 GtCO2 eq/ano), superadas apenas pelo reflorestamento (8,47 GtCO2 eq/ano) e seguidas de perto pela redução do desmatamento (6,0 GtCO2 eq/ano). Notavelmente, as proteínas alternativas têm nove vezes mais potencial de mitigação do que a segunda intervenção mais promissora dos sitemas alimentares, que visa melhorar a produção de carne (melhoria na digestibilidade da ração de ruminantes, com 680 MtCO2 eq/ano).

O potencial dos aditivos de ração (por exemplo, algas) é de 380 MtCO2 eq/ano e da melhoria da produtividade dos ruminantes é de 179 MtCO2 eq/ano. Reparem que passamos da escala de gigatoneladas (GtCO2) para megatoneladas (MtCO2), mil vezes menor. Outras intervenções no sistema alimentar que têm menos de um décimo do impacto potencial das APs incluem inovação em fertilizantes (480 MtCO2 eq/ano), inovação no cultivo de arroz (243 MtCO2 eq/ano) e manejo de esterco (118 MtCO2 eq/ano).

Ou seja, a solução de se promover o consumo de carnes vegetais é, primeiramente, motivada por fatores ligados à sustentabilidade, segurança alimentar e resiliência dos sistemas de produção de alimentos.

Apesar disso, vocês podem reparar que há muito pouca discussão sobre os impactos dos alimentos de origem animal no planeta e nas dietas. Enquanto isso, vemos diversas campanhas tentando construir um discurso sem evidências científicas sobre essas novas tecnologias que tentam produzir alimentos vegetais sustentáveis, ocupam uma parcela muito pequena do consumo e ainda estão em desenvolvimento.

Por que há um escrutínio tão grande e exagerado em relação a novas tecnologias mais sustentáveis, enquanto não há qualquer menção de debate sobre os grandes sistemas produtivos, que de fato impactam o nosso planeta? A quem essa desproporcionalidade serve?

A inovação também tem seus desafios. É comum vermos críticas às novas tecnologias, mas raramente vemos um exame tão rigoroso aplicado aos métodos tradicionais, que têm impactos infinitamente maiores. No fim, não é sobre ciência, é sobre alimentar uma narrativa anti-científica que tenta impedir a inovação de ocupar seu espaço no futuro – e trazer consigo inúmeros benefícios para o planeta e para as pessoas.

Não vai funcionar. O que faz sentido para o planeta sempre encontra seu espaço para emergir. Se somos capazes de produzir alimentos com impacto ambiental reduzido, melhora comparativa na nutrição e impacto social positivo, por que não?

Essa pergunta é o que move uma parte do setor produtivo de animais a diversificar suas produções, tornando-se empresas de proteínas que vão, também, ofertar proteínas vegetais. Enquanto a própria indústria de animais adota essas novas tecnologias como uma solução de sustentabilidade, muitos se aproveitam para lucrar com a desinformação e com o medo que as pessoas têm do que é novo.

Lembre-se: o novo pode ser bom, especialmente num contexto em que o planeta precisa tanto.

Eu fecho esse post com um convite: para cada matéria com informações distorcidas que você vir, leia também um estudo de verdade. Consulte uma planilha de fatos. Veja os relatórios do Banco Mundial, IPCC, BCG etc.. Aproveite, também, para compartilhar as notícias verdadeiras em suas redes. Quer saber mais sobre os relatórios que eu mencionei? Abaixo:

Fontes e Referências:

  1. Estudo publicado no The Lancet, tema da matéria: Este estudo observacional publicado pelo NUPENS analisa a relação entre o consumo de alimentos ultraprocessados, incluindo proteínas vegetais, e a incidência de doenças cardiovasculares.
  2. Classificação da OMS sobre carnes processadas: Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica as carnes processadas como Grupo 1 (cancerígenas para humanos) e a carne vermelha não processada como Grupo 2A (provavelmente cancerígena para humanos).
  3. Relatório do Banco Mundial: O relatório “Recipe for a Livable Planet: Achieving Net Zero Emissions in the Agrifood System” destaca estratégias para alcançar emissões líquidas zero no sistema agroalimentar, enfatizando o impacto positivo das proteínas alternativas na redução de emissões de gases de efeito estufa. As proteínas alternativas têm o segundo maior potencial de mitigação em 6,1 GtCO2 eq/ano, superado apenas pelo reflorestamento, que é de 8,47 GtCO2 eq/ano.
  4. Relatório da ONU Meio Ambiente (Dez. 2023): O relatório “What’s Cooking: An Assessment of the Potential Impacts of Selected Novel Alternatives to Conventional Animal Products” analisa os impactos climáticos, de biodiversidade e de saúde global das proteínas alternativas em comparação aos produtos animais convencionais, destacando os benefícios ambientais e a necessidade de apoio governamental para pesquisa e expansão.
  5. Comissão de Inovação: Mudança Climática, Segurança Alimentar, Agricultura (Dez. 2023): O estudo “Innovation Case for COP28: Alternative Proteins” da Universidade de Chicago, liderado pelo Nobel de Economia Michael Kremer, explora como as proteínas alternativas podem aliviar a segurança alimentar, reduzir emissões climáticas, aliviar a desnutrição e oferecer uma forma mais adaptativa de produção de proteínas.
  6. Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais, CSIS (Maio 2023): O relatório “Mitigating Risk and Capturing Opportunity: The Future of Alternative Proteins” destaca os benefícios climáticos, de biodiversidade e de saúde global das proteínas alternativas em comparação aos produtos animais convencionais. O estudo chama a atenção para a resiliência dos sistemas alimentares e a segurança alimentar e hídrica.
  7. Instituto Internacional de Análise de Sistemas Aplicados, Nature Communications (Set. 2023): O estudo “Feeding Climate and Biodiversity Goals with Novel Plant-Based Meat and Milk Alternatives” explora como as proteínas alternativas podem contribuir para a redução de emissões, uso da terra e uso de água, além de beneficiar a biodiversidade. Estima-se que a adoção dessas alternativas possa reduzir as emissões em 6,3 Gt CO2eq/ano, diminuir a área agrícola global em 12% e reduzir o uso de água em 10%.
  8. Fundação ClimateWorks & Departamento de Negócios, Energia e Estratégia Industrial do Reino Unido (2021): O relatório “Global Innovation Needs Assessment: Protein Diversification” avalia o potencial das proteínas alternativas em mitigar emissões de GEE e melhorar a segurança alimentar global. Estima-se que a adoção de proteínas alternativas possa atingir uma mitigação de 5 GtCO2 eq/ano até 2050, com investimentos governamentais anuais de US$ 4,4 bilhões em pesquisa e desenvolvimento.
  9. Global Methane Hub & Fundação ClimateWorks (Abril 2023): O relatório “Global Innovation Needs Assessment: Food System Methane” analisa como investimentos em proteínas alternativas podem gerar benefícios econômicos significativos e reduzir as emissões de metano no sistema alimentar. Conclui que investimentos em proteínas alternativas poderiam gerar US$ 700 bilhões em PIB e criar 83 milhões de empregos.
  10. Is plant-based meat good for your health? Este relatório examina os benefícios das carnes vegetais para a saúde, destacando como elas podem reduzir o risco de doenças cardíacas, câncer de intestino, melhorar a saúde intestinal e ajudar na manutenção de um peso saudável. As carnes vegetais oferecem menos calorias e gordura saturada, além de serem uma fonte de fibras, ao contrário das carnes convencionais.

Vamos promover uma alimentação mais sustentável e saudável? 🌍🌿 Para isso, temos também que promover um debate baseado em ciência. 📊🔬


Agradeço a revisão desse texto, feita pelos colegas Cristiana Ambiel, Raquel Casselli e Vinícius Gallon de Aguiar.

(Esse artigo reflete exclusivamente minha opinião. Foi escrito e revisado por seres humanos e a imagem de capa foi criada por uma IA.)

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