carnaval gastronomia barreado paranaense
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Por J. A. Dias Lopes

Apesar de promover o maior e mais animado carnaval do mundo, o Brasil não desenvolveu uma culinária especial para a folia. Impossível encontrar uma explicação para isso.

A Itália e Portugal, por exemplo, têm várias receitas. Há pelo menos só um prato exclusivo no Brasil. Alguém lembrará da canja de galinha. Mas não se trata exatamente de um prato festivo. Sendo um tipo de sopa, um caldo denso de arroz servido quente e, por isso, inadequado ao calor do verão, tornou-se popular pela capacidade restauradora. Proporciona ao folião vitaminas, sais minerais, proteínas e carboidratos necessários à reposição das energias. Também ajuda a hidratar o organismo de quem pulou demais ou avançou no sinal vermelho da bebida.

Prato brasileiro único para o Carnaval

No Brasil, o único prato criado especialmente para o carnaval é o barreado paranaense. Assim mesmo não apresenta consumo nacional, mas regional. Leva carne, às vezes mais de um tipo, toucinho e temperos, sobretudo cominho, que cozinham em fogo brando, durante muitas horas, até a transformação em uma espécie de ragu. Acompanham arroz, farinha de mandioca, banana caturra ou nanica cortada em rodelas, pimenta malagueta e cachaça.

Antigamente, o barreado era preparado em panela de cobre. Hoje, usa-se a de barro, grande, alta e cônica, de ascendência indígena. Para os ingredientes não secarem, e como o acréscimo de água comprometeria o sabor do prato, “barreia-se” a fresta entre a tampa e a panela com um pirão de farinha e água. Daí o nome da receita. A panela fica 12 ou 24 horas em fogão a lenha ou sobre uma chapa colocada na chama do fogão a gás. “No passado, era enterrada no chão, com o fogo feito sobre ela”, conta Ana Teresa Londres, médica e nutróloga curitibana, além de cozinheira de mão cheia, formada pela escola de culinária Le Cordon Bleu, de Paris. “Outros dizem que o fogo era feito no fundo de um buraco, sobre o qual ia a panela”.

Sua origem é lusitana. Grupos de colonos vindos do arquipélago dos Açores, no meio do Oceano Atlântico, a 1.516,62 quilômetros de Portugal continental, aportaram em meados do século XVIII na faixa litorânea do Paraná, onde se encontram os municípios de Paranaguá, Morretes, Guaratuba e Antonina. Na ocasião, trouxeram uma receita ancestral que sofreu em nosso país uma inevitável aculturação. Inicialmente, alimentou dançarinos, cantores e tocadores de viola, rabeca e adufo (pandeiro rústico) do fandango.

Esse bailão, com danças e sapateados, comida farta, diferentes melodias e coreografias, acontecia em festas religiosas, batizados, casamentos e, especialmente, no entrudo – a forma de brincar carnaval que perdurou até o Brasil monárquico. Folguedo violento, no qual as pessoas jogavam umas nas outras lufadas de água, vinagre, groselha, vinho ou cal, extinguiu-se com a repressão oficial e o aparecimento civilizado do confete e da serpentina.

Apesar de não encontrar similar na culinária açoriana, o barreado apresenta características que comprovam essa origem: o longo cozimento das carnes em panela hermeticamente fechada (o recipiente do cozido das caldeiras das Furnas, na ilha açoriana de São Miguel, é vedado com um pano branco bem amarrado); o emprego necessário do cominho, tempero pouco difundido na culinária do continente lusitano e igualmente na brasileira; o consumo socializante do prato.

O português João Vasconcelos Costa, no livro “O Gosto de Bem Comer” (Editorial Caminho, Lisboa, 2005), ressalta que uma das tipicidades da cozinha açoriana, comum a todas as ilhas, “é o uso variado e imaginativo de especiarias”. O cominho, junto com a pimenta-preta, o cravinho, a pimenta-da-jamaica, a canela, a noz-moscada, a erva-doce, são saboreados em grau muito maior do que no continente. “Talvez isto tenha a ver com a rota das Índias”, especula Vasconcelos Costa. “A passagem pelos Açores era obrigatória (…) no regresso. Será que os capitães das esquadras trocavam especiarias por produtos frescos das ilhas?”.

Por que o Brasil não criou outro prato típico de carnaval? Eis uma questão intrigante. Talvez porque o interesse lúdico, manifestado nas fantasias, nos blocos, nas escolas de samba, no canto, na dança e nos saracoteios, suplante o prazer da comida. Em compensação, haja bebida! O carnaval é a festa do ano na qual os brasileiros mais consomem cerveja, cachaça e destilados de alto calibre. Curiosamente, a palavra carnaval, que na Antiguidade designava uma celebração de natureza orgíaca, como as bacanais romanas, deriva do latim “carne levare”, ou seja, abstenção de carne.

Nos séculos XI e XII, dava-se o nome de “carnelevarium” à véspera da quarta-feira de cinzas. Nesse dia, iniciava-se a abstinência de carne dos quarenta dias da Quaresma, estabelecida pela Igreja Católica. Pode-se especular por que os caboclos do litoral paranaense se fartavam tanto de barreado no carnaval. Simplesmente iam à forra, pois sabiam que depois da folia o consumo de carne estaria vetado. Ziriguidum! A propósito: esse brado que acabamos de usar parece ter origem onomatopaica. Designa festa, folia ou música de carnaval. “Todos caíram no ziriguidum”, registra o “Dicionário Caldas Aulete” digital.

BARREADO

Rende 12 porções.

INGREDIENTES

.2,5 kg de coxão duro ou lagarto

.2,5 kg de cupim (há quem prefira outra carne, pois o cupim é ingrediente de assimilação recente).

.500 g de toucinho fresco

.4 dentes de alho ralados

.1 colher (sobremesa) rasa de cominho em pó

.1 colher (sobremesa) rasa de pimenta-do-reino moída

.2 folhas de louro

.150 ml de cachaça

.Sal e molho de pimenta vermelha a gosto.

.Farinhas de mandioca e de trigo, para vedar a tampa da panela.

ACOMPANHAMENTO

.Farinha de mandioca

.Banana-d’água, nanica ou caturra

PREPARO

1.Limpe as carnes, descartando nervos e gorduras. Corte-as em cubos, junto com o toucinho.

2.Coloque parte do toucinho no fundo de uma panela de barro, tipo caldeirão.

3.Num recipiente, misture as carnes, o toucinho restante, o alho e todos os temperos. Coloque na panela e adicione água suficiente para cobrir as carnes.

4.Despeje a cachaça e tampe a panela.

5.Para vedar a tampa, misture as farinhas com um pouco de água e amasse com as mãos, até obter uma pasta.

6.Vede a tampa, espalhando a pasta com as mãos molhadas, até a panela ficar hermeticamente fechada.

7.Cozinhe em fogo brando, por cerca de 9 horas.

8.Rompa a pasta de farinha usando uma faca e retire a tampa. Não convém mexer muito o barreado. Misture-o delicadamente, para separar as fibras das carnes se elas estiverem unidas.

9.Apure o caldo, com a panela apenas tampada, por mais uma hora, para baixar o líquido.

10.Retire a gordura que fica na superfície e corrija o sal.

11.Sirva o barreado na própria panela, com os acompanhamentos.

Receita do antigo Mercado de Paranaguá, recolhida pela curitibana Regina Moreira Rodrigues.

Barreado paranaense (Wikipédia/Divulgação)

José Antônio Dias Lopes é cronista gastronômico e colaborador do Food Forum News. Entre em contato conosco para projetos editoriais com o autor sobre temas de história da gastronomia.

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