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Vários salumi italianos caíram no gosto dos brasileiros. Referimo-nos aos produtos de origem animal obtidos por salga e cura, a fim de adquirirem as qualidades necessárias. Em nosso país, recebem o nome de embutidos, enchidos ou frios. Enfim, tratam-se dos produtos de charcutaria. Difícil encontrar um brasileiro urbano que não tenha saboreado uma rodela de salame ou de mortadela. O número dos que já conhecem copa ou capocolo, bresaola e sopressata é menor, mas nem por isso desprezível.

O salame, cujo nome deriva do verbo italiano salare (salgar), foi criado pelos camponeses de várias regiões da Península Itálica, para conservar a carne por um período longo, no tempo em que ainda não havia a refrigeração controlada. A mortadela dispensa explicação demorada. Teve origem em Bolonha, na Emilia-Romanha, onde continua a ser produto emblemático. Quanto à copa, surgiu nas províncias de Parma e Módena (na mesma região da Mortadela) e igualmente na Lombardia, sobretudo nas províncias de Mantova, Pavia e Milão. Chegou ao Brasil com os italianos que se instalaram no Rio Grande do Sul. A bresaola, único dos salumi à base de carne bovina salgada e maturada, é típica do Valli della Valtellina, na fronteira da região da Lombardia com a Suíça. Já da sopressata existem dois tipos principais: um salame seco feito na Toscana e na Ligúria; e uma salsicha seca curada típica da Basilicata, Puglia e Calábria.

Entretanto, o embutido de ascendência italiana mais difundido no Brasil é hoje a linguiça calabresa. Seu primado poderia ser ameaçado apenas pela mortadela e o presunto, produto criado no Império Romano a partir de um processo de conservação da carne com sal inventado pelos egípcios. Mas perdem nos usos, ou seja, em versatilidade. Fresca ou submetida à maturação, para desidratar e secar, defumada ou não, a calabresa entra em uma infinidade de preparações. Vai bem assada, cozida ou frita, sobretudo acebolada na frigideira, quando se converte em parceira divina da cerveja ou da cachaça. Recheia o pão, cobre a bruschetta e a pizza, transforma-se em molho de macarrão, enriquece a sopa, lentilha, feijão, farofa, escondidinho, tortas e risoto (veja no final a receita del contadino, o camponês italiano), acompanha o churrasco, disputando com ele o espeto ou a grelha, e serve inclusive para fazer hambúrguer.

A calabresa é tão popular que muitos acreditam ser exclusivamente nacional. Dizem que até o nome seria brasileiro. Viria da pimenta usada para temperá-la. Mas é melhor considerá-la mezzo a mezzo calabresa. Afinal, a receita que dispomos começou a ser preparada no bairro do Bixiga, em São Paulo, em princípios do século passado, por imigrantes da Calábria. Inspirou-se no embutido homônimo, típico daquela região meridional da Itália, porém sofreu adaptação. Também a pimenta com seu nome é mais ou menos nacional, até poque não existe como planta, nem produz frutos. Trata-se da latino-americana dedo-de-moça ou pimenta-aji (Capsicum baccatum), esmagada ou em flocos, originária do Peru, da qual existem diversas variedades.

Conforme o regulamento do Ministério da Agricultura, a linguiça calabresa brasileira, para merecer a designação, leva carne suína moída ou picada, gordura rígida e especiarias, além de ter o necessário sabor picante da pimenta que a batiza. Ainda incorpora antioxidantes e conservadores, para garantir a preservação. Tendo a forma cilíndrica e às vezes de u ou ferradura, é uma das linguiças industrializadas mais vendidas no Brasil, se não for a número um. Bate em fama a toscana, a portuguesa, a mista e a de pernil.

Descende da Salsiccia di Calabria DOC, à base de carne fresca de suínos criados na região do mesmo nome e temperada com sal, pimenta preta, peperoncino calabrês (Capsicum annuum), creme de pimentão, vinho e sementes de erva-doce, aromas naturais e conservadores. Leva paleta de porco (no mínimo 50%), junto com lardo, a camada de gordura por baixo da pele de partes do suíno, temperada com alecrim (6 a 20% a cada quilo de carne).

Os calabreses instalados em São Paulo começaram a fazer linguiça em casa, no Bixiga e bairros adjacentes. Eram artesãos, entalhadores, carpinteiros, sapateiros, serralheiros, barbeiros etc. Criavam porcos no quintal, junto com outros animais domésticos. Repetiam uma prática comum em todo o sul da Itália, adotada nas zonas rurais e urbanas, onde cada família comprava um porco no verão europeu para engordá-lo até o final do ano, quando o abatiam. Consumiam as carnes mais nobres nas festas de Natal e Ano Novo e faziam embutidos para consumo durante o inverno.

Em São Paulo, famílias calabresas dedicaram-se à atividade. Comiam uma parte da carne do porco que abatiam e transformavam a outra em linguiça, como fonte de renda ou a fim de reforçar o apertado orçamento doméstico. Antigamente, podia-se fazer embutidos em casa. Hoje, os controles sanitários interditam a atividade. Uma dessas famílias morava no bairro da Liberdade, vizinho do Bixiga. Era a do casal Luciano Loprete e Raffaella Giordano Loprete. Produziu em casa volumes expressivos de uma requisitada linguiça calabresa. Isso entre a década de 1920 ao início dos anos 1970. Chegaram a ser mais de 1.200 quilos por mês. Foram seus clientes, em certa época, as principais cantinas e pizzarias da cidade: Castelões, Balilla, 1060, Papai e Jardim de Napoli, ainda na Rua Maria Paula; e Don Ciccillo, que servia as refeições do Clube dos Artistas e Almoço Com as Estrelas da antiga TV Tupi.

“Não há paulistano crescido em São Paulo naquele período que não tenha provado a linguiça feita pelos meus avós”, assegura o jornalista e tradutor Luciano Loprete, que recebeu o mesmo nome do ancestral. “Lembro bem porque, ainda menino, fiquei incumbido de receber as encomendas por telefone”. Seus avós formavam um casal puro-sangue italiano. O patriarca Luciano Loprete era calabrês da comuna de Rossano, na província de Cosenza; Raffaella Giordano Loprete nasceu na província de Salerno, na Campania. Depois da morte do marido, ela seguiu à frente do negócio familiar até 1967, quando faleceu.

A seguir, os açougues começaram a fazer a calabresa para vender. O primeiro da capital paulista voltado exclusivamente à produção da linguiça teria sido o 7 de Setembro, aberto em 1937. Localizava-se perto da Praça João Mendes e pertencia ao italiano Domenico Trozzi, natural dos Abruzos, região da Itália central que tem Áquila como capital. Mas sua mulher, Giselda Cavallo, brasileira e filha de calabreses da província de Cosenza, era quem preparava a linguiça, junto com a ajudante dona Peppina (diminutivo de Giuseppina), conforme receita de família. Assim contava Luiz Trozzi, o Gijo, o filho do casal, falecido em 2016 aos 84 anos de idade.

“Comecei a trabalhar com oito anos de idade no açougue do meu pai, quando tinha a altura do balcão, e lembro de minha mãe e dona Peppina enchendo as linguiças com uma maquineta de manivela”, contava Gijo, ufanando-se da habilidade de ambas. Ele herdou o estabelecimento no final da década de 1940, mas com as exigências da Vigilância Sanitária parou de produzir linguiça.

Passou a mandar prepará-la no frigorífico Milano Biagio, da rua Padre Senepa, na Vila Monumento, em São Paulo, controlando a receita e preservando a exclusividade. Poderia ser outro. Há ótimos frigoríficos no Brasil, que fazem linguiça de qualidade – as marcas Aurora, Alegra, Sadia e Seara, por exemplo. Mas escolheu o Milano Biagio. Alguns frigoríficos agregam à receita uma porcentagem de carne bovina ou de ave, opções que a Casa Gijo Linguiçaria rejeita.

Simpático e comunicativo, sempre de óculos escuros e trajando calças e sapatos brancos (os amigos brincavam que lembrava um personagem do filme norte-americano “The Godfather”, no Brasil “O Poderoso Chefão”), Gijo dizia acompanhar o processo de produção. A calabresa devia sair do seu jeito. Em 1955, abriu na Rua Doutor Pinto Ferraz, no bairro de Vila Mariana, uma loja na qual passou a vender “as melhores linguiças do mundo”, com a calabresa correspondendo a 60% do seu faturamento.

A Casa Gijo Linguiçaria funciona até agora no mesmo local, ocupando um espaço de 50 metros quadrados e vendendo 1.500 quilos do embutido por mês. Atualmente, é comandada por uma das filhas do charcuteiro, Gina Trozzi. Antes de morrer, o pai diversificou o produto. Agora, oferece duas dezenas calabresas diferentes, curadas ou pré-cozidas: além da tradicional, a picante, a dinamite (muito apimentada), a calabresinha; e ainda as recheadas, que vão da babalu (figo turco seco, queijo, nozes e vinho) à fiorentina (queijo tipo parmesão e vinho branco).

Um dos orgulhos de Gijo era a linguiça que comercializava ter sido saboreada pelo papa João Paulo II, em São Paulo, no mês de julho de 1980, em refeição no Mosteiro São Geraldo, dos monges beneditinos húngaros. O então pontífice estava hospedado ali. A sogra do charcuteiro, Irene Geocze, nascida em Budapeste, integrava a comunidade de conterrâneos leigos que se reunia e confraternizava no Colégio Santo Américo, ao lado do mosteiro, controlado pela mesma ordem religiosa.

Encarregada de preparar um dos pratos da refeição de João Paulo II, ela usou a calabresa do genro no molho do macarrão. O futuro santo católico, que era polonês, apreciava embutidos. Segundo Gijo, João Paulo II elogiou o sabor do molho. Aliás, seu país prepara, em duas aldeias dos subúrbios de Cracóvia a famosa linguiça lisiecka kielbasa. É elaborada de acordo com receitas centenárias passadas de geração em geração.

A linguiça é o mais ancestral embutido da humanidade e os antigos romanos consideravam-se pioneiros na sua difusão pelo mundo, antes do nascimento de Jesus Cristo. Atribuíam a invenção aos lucanos, povo de origem samnita que se estabeleceu no século V a.C. na área montanhosa da Lucânia, atual Basilicata, na Itália meridional, que ainda incluía parte da Campania (principalmente da província de Salermo) e do território da Calabria. Sofreram grande influência da civilização helênica, em decorrência da colonização do litoral da atual Itália, da qual podem ter assimilado os princípios da especialidade. Escravos que os romanos fizeram na Lucânia a teriam introduzido em Roma, onde se tornou apreciada pela capacidade de conservação, facilidade de transporte da carne suína e delicioso sabor. Alguns autores, porém, sustentam que a invenção da linguiça é muito mais antiga..

Na Itália, cada região que a produz atribui-lhe um nome: bardiccio, rocchio, salamella, salamina, salamino, salametto, sarzizza, zazzicchia. Na Lombardia e Vêneto existe a prestigiadíssima luganega, luganiga ou luganica, à base de carne suína fresca. Entretanto, a denominação predominante no país é salsiccia (salsicha). Discute-se a sua etimologia. Acredita-se que a palavra italiana deriva de “sale” (sal) e “ciccia” (carne). Pode vir também de “salsus” e “insicia”, que significam “carne salgada” e “insaccata” (embutida). Já a designação portuguesa descenderia da latina “lingua”, acoplada do sufixo “iça”. No século XVII, diziamos linguinça, que passou a lingüiça com trema no u e perdeu esse sinal diacrítico no Acordo Ortográfico de 1990. Foi o tratado internacional firmado com o objetivo de criar uma ortografia unificada para os países que falam português. Mudou-se a grafia, porém a calabresa do Bixiga permaneceu imutável, graças a Deus!

Calabresa mezzo a mezzo – Risotto Del Contadino

Rende 4 porções

Ingredientes

.100 g de feijão mulatinho

.1 folha de louro

.1 colher (sopa) de cebola picada

.4 colheres (sopa) de manteiga

.200g de linguiça calabresa curada e picada grosseiramente (de preferência sem a pele)

.380g de de arroz vialone nano (ou arborio)

.1 xícara (chá) de vinho tinto

.1 1/2 litro de caldo de carne

.4 colheres (sopa) de queijo parmesão ralado

Modo de preparo

1. Cozinhe o feijão em água, com uma folha de louro, escorra e reserve.

2. Em uma panela, doure a cebola em metade da manteiga. Junte a linguiça e frite-a por alguns minutos, mexendo.

3. Acrescente o arroz, refogue sem parar de mexer, incorpore o vinho tinto e deixe-o evaporar em fogo alto.

4. Diminua o fogo e adicione, aos poucos, o caldo de carne (quase em ponto de fervura), à medida que o arroz for secando, mexendo seguidamente.

5. Após uns 10 minutos, coloque o feijão, mexa por mais alguns minutos e retire do fogo quando o arroz estiver al dente.

6. Junte imediatamente o restante da manteiga e o parmesão ralado. Misture delicadamente e sirva em seguida.

Receita do chef de cozinha italiano Luciano Boseggia.

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