Pavarotti
Reading Time: 7 minutes

Por José Antônio Dias Lopes*

A pedido do querido amigo Didu Russo, republico com alterações o texto que escrevi tempos atrás sobre minha entrevista com Luciano Pavarotti (1935-2007), o maior fenômeno da lírica moderna – e comilão antológico.

Numa tarde de outono de 1989, em Roma, onde eu trabalhava como correspondente da revista Veja, de São Paulo, o telefone tocou: “Aqui é Luciano Pavarotti”, disse-me do outro lado da linha uma voz de homem, ligeiramente fina e sem nenhuma impostação. No primeiro momento, duvidei que estivesse falando com o famoso tenor italiano, que eu tanto admirava, consagrado intérprete das obras de Verdi, Puccini, Bellini e Donizetti. Imaginei tratar-se de uma brincadeira. Eu havia pedido uma entrevista com ele, um ano antes, e jamais havia recebido uma resposta. Considerava descartada a minha solicitação.

Quase desperdicei a preciosa oportunidade! Por pouco (e por muito pouco, mesmo) não respondi a Pavarotti: “E aqui é o Julio Iglesias”. Ainda bem. Pavarotti era um tenor ocupadíssimo, passava dez meses do ano em apresentações no exterior. No outono de 1989, por exemplo, tinha compromissos agendados até 1994. Naquela estação do ano passava um período mais longo em sua bela mansão de Módena, na Itália, hoje transformada em casa museu, porque tratava de uma dor ciática. Tanto que caminhava com dificuldade e ficava impossibilitado de montar a cavalo (criava 30 animais de raça) e praticar seu esporte favorito: a equitação.

Uma semana depois do telefonema eu me encontrava ali, 400 quilômetros ao norte de Roma, no coração da Emília-Romagna, região histórica com quatro milhões de habitantes e 22 124 km², cuja capital é Bologna. Limita-se ao norte com o Vêneto e Lombardia, a oeste com o Piemonte e a Ligúria, ao sul com a Toscana e com a República de São Marinho. Enfim, eu estava diante do maior fenômeno da lírica moderna, desde a soprano greco-americana Maria Callas. Sim, os fãs de Pavarotti tinham razão. em vez de uma rainha, a lírica dispunha de um rei. Pavarotti revelava qualidades vocais inconfundíveis. Combinava uma voz prateada e ao mesmo tempo macia, que se elevava e modulava com naturalidade, alcançando facilmente as notas extremas do registro. Essas qualidades, raríssimas em um tenor, é que o faziam um mito.

Nossa conversa começou às dez da manhã, na mansão onde o tenor residia com a primeira mulher, Adua, e as três filhas do casal, uma delas roqueira (“O rock é um gênero muito criativo, que dá grande liberdade ao cantor para acrescentar alguma coisa à música”, justificava Pavarotti). Anos depois, ele casou com sua secretária, Nicoletta Mantovani, com quem teve outra filha e um filho, falecido pouco tempo depois de nascer. A conversa terminou à tarde.

Uma das primeiras perguntas que lhe fiz foi justamente por que sua voz, quando falava, era tão diferente da que se ouvia no palco ou em gravações – enfim, por que o tenor Pavarotti era absolutamente irreconhecível ao telefone. “É porque, quando falo, não faço a voz ressoar na boca e nas bochechas”, explicou ele. Pavarotti até se divertia com a diferença. Contou-me que, certa vez, ao telefone, a pessoa do outro lado da linha achava que estava falando com Adua, a primeira mulher. Brincalhão incorrigível, quando desembarcou no Brasil em 1979, para recitais no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e no Palácio das Convenções do Anhembi, em São Paulo (apresentou-se sete vezes no país), quase matou de susto seu empresário de ópera. Simplesmente fingiu ter perdido a voz na viagem de avião…

A entrevista com Pavarotti rolou solta, mas ele a interrompeu algumas vezes para raides na cozinha, a fim de supervisionar a comida, de onde sempre voltava mastigando alguma coisa. Em uma das incursões, trouxe-me uma piadina ou piàda romagnola, como preferem os tradicionalistas, espécie de pão redondo, achatado, ligeiramente crocante e flexível. É sobretudo uma comida de rua em toda a Romagna, região que forma com a Emília a histórica Emilia-Romagna. Trata-se de uma espécie de pão redondo, achatado, ligeiramente crocante e flexível, por sinal já saboreado pelos romanos, que o teriam assimilado dos bizantinos e palestinos. Os árabes têm uma preparação assemelhada: o pão sírio ou pita.

Apesar de não termos combinado, ele me convidou para almoçar, ressalvando que a refeição seria “frugal”. Nem tanto… Iniciou com finas fatias de presunto cru de Parma, enriquecidas com lascas de queijo parmesão e regadas com um fio de extravirgem, o azeite obtido a partir de azeitonas através de processos físicos, sem produtos químicos e com acidez muito baixa. Como primeiro prato, ravioli al ragù, recheado com patê de faisão (ou de outra ave, não lembro). A seguir, cotoletta alla bolognese, ou seja, uma costeleta de vitela coberta com ovos, farinha e pão ralado. Enfim, como diria outro amigo, o jornalista Thomaz Souto Correa, um almoço para o verdadeiro guloso comer de joelhos.

Sobre a mesa, havia ainda outro festejado produto regional: uma garrafa do frisante Lambrusco, vinho antiquíssimo originário da Emilia-Romagna. Sua uva é esmagada, fermentada e transformada em bebida desde a civilização etrusca, no primeiro milênio antes de Cristo. Pavarotti fez uma pequena declaração de amor a esse vinho. Seus olhos brilhavam. Contou que o Lambrusco é um vinho alegre, volúvel, para ser consumido jovem e sem remorso. Não deve envelhecer. Ao contrário: piora na adega. Existem quatro tipos dele, nas variações secco e amabile. Pavarotti apreciava o quarteto. Eu prefiro o Gasparossa, pelo seu perfume, cor rubi mais intensa que a dos outros, espuma vivaz e evanescente. Combina divinamente com muitas receitas da região do tenor.

Os italianos de outros santuários gastronômicos do país que me perdoem, mas a cozinha da Emilia-Romagna é imbatível. Poucas outras, na Itália, são tão ricas em especialidades notáveis. “Quando encontrares a cozinha emiliana, deves fazer uma reverência”, recomendava Pellegrino Artusi (1820-1911), gastrônomo e escritor, autor do clássico italiano “A Ciência na Cozinha e a Arte de Comer Bem” (Edição da Associação Emiliano-Romagnola Bandeirante, Salto-Itu, São Paulo, 2009). Não é para menos. Basta uma visita às principais cidades da Emília-Romagna – além de Módena, Bologna (a capital), Ravenna, Piacenza, Parma e Ferrara –, para constatar que, naquele pedaço do território italiano onde nasceu Artusi, pratica-se o culto à mesa com fervor religioso.

Entre as invenções emiliano-romagnolas que correm o mundo, pontificam as massas recheadas: os ravioli, cappelletti e tortelli. Cada cidade orgulha-se de uma estrela gastronômica. Módena, a terra de Pavarotti, notabiliza-se pelos ravioli de carne. Bologna é o reduto dos tortellini. Em Ravenna, saboreia-se ravioli com squacquerone, queijo regional do tipo macio e quebradiço. Em Piacenza, os tortelli têm recheio de ricotta e ervas. Já no coração dos tortelli de Ferrara, que ali se chamam cappellacci, encontram-se abóbora e queijo.

Outro monumento da culinária emiliano-romagnola são os gnoccchi de batata, na manteiga ou al sugo. Ainda convém lembrar dos stecchi fritti, espetos de mortadela e queijo, mergulhados em béchamel e fritos; da cotoletta alla bolognese con prosciutto crudo e parmigiano; da salma da sugo, um embutido de carne de porco típico de Ferrara, consumido depois do cozimento; e do famosíssimo zampone di Módena – a pata dianteira do suíno, desossada, recheada com carne picada, temperada com especiarias, cozida na água e servida com lentilha ou feijão –, que Pavarotti, por tradição e superstição, nunca deixava de comer nas festas de fim de ano. Ele garantia que lhe dava sorte. “O zampone porta fortuna no ano que começa”, afirmava o tenor. Como se tudo isso não bastasse, nasceram e são produzidos na Emília-Romagna o soberbo presunto cru de Parma, a perfumada e delicada mortadela de Bologna, além do legítimo queijo parmesão, que na Itália recebe o nome oficial de parmigiano-reggiano.

Durante a entrevista, Pavarotti afirmou estar fazendo regime para emagrecer e que já havia perdido “mais quarenta quilos”. Honestamente, isso não se percebia a olho nu… Entretanto, ressalvou que interrompera a dieta “por uns dias”. E, sem rodeios, completou: “Quando faço regime, como apenas 1 800 calorias por dia; no almoço, só spaghetti; à noite, limito-me a um pedaço de carne”. O fato é que, sendo homem obeso, tendo na época 56 anos de idade e medindo 1,80 metro de altura, Pavarotti era na prática um comilão sem freios. Gostava tanto de comer que até se precavia de uma eventual falta de alimento.

Nas viagens ao exterior, levava pacotes de massas italianas de grano duro, queijo parmigiano-reggiano e outros socorros gastronômicos. Quando foi à China, incluiu na bagagem até fogão e cuoco italiano. Numa das vezes em que esteve no Brasil, ocupou por três noites uma suite de 450 metros quadrados do luxuoso Hotel Ca’d’Oro, de São Paulo, onde dispunha de cozinha exclusiva, pois gostava de preparar comida ao voltar dos espetáculos; na sala, funcionava uma geladeira triplex repleta de queijos e frios. Horas antes de hospedar-se no Ca’d’Oro, foi necessário trocar a balança do banheiro, com capacidade máxima de 130 quilos. Afinal, Pavarotti pesava 170 quilos! Portanto, não acreditei no seu propósito de emagrecer, relatado em Módena. Como dizia o grande endocrinologista Geraldo Medeiros, de São Paulo, “os gordos vivem pensando que enganam os magros”.

P. S. A conversa completa com Pavarotti pode ser encontrada no livro “A História é Amarela – Uma Antologia de 50 Entrevistas da Mais Prestigiosa Seção da Imprensa Brasileira” (Editora Abril, São Paulo, SP, 2017)

Receita de Piadina Romagnola

Rende cerca de 15 unidades

INGREDIENTES

.1 kg de farinha de trigo

.6 g de bicarbonato de sódio

.10 g de fermento biológico seco e instantâneo, para pão

.200 g de banha de porco (ou azeite, se preferir)

350 ml de água morna

.2 colheres (café) de sal

MODO DE PREPARO

1.Em uma bancada de trabalho, peneire a farinha de trigo com o sal, o bicarbonato de sódio e o fermento. Faça um espaço no centro e nele coloque a banha de porco.

2.Misture e vá amassando esse composto com as mãos, colocando a água morna aos poucos, até obter uma massa elástica e uniforme.

3.Faça uma bola com a massa, cubra com um guardanapo de algodão e deixe-a levedar por cerca de 30 minutos.

4.Divida a massa em partes com cerca de 80 g cada uma e estenda-as (usando o rolo ou a máquina de macarrão) em folhas de 3 mm de espessura.

5.Formatize essas folhas (use um molde, se for o c aso em discos de aproximadamente 20 cm de diâmetro.

6.Leve ao fogo uma chapa de ferro ou de material antiaderente. Quando aquecer, coloque a piadina, deixe-a por 2 a 3 minutos, depois vire-a com a ajuda de uma espátula, mantendo-a por mais 2 a 3 minutos no fogo, até ficar ligeiramente dourada. Repita o procedimento com as demais.

7.Sirva a piadina quente, enriquecida por ingredientes diversos: embutidos, queijos, saladas etc., ou como acompanhamento de pratos.

Receita preparada pelo grande restaurateur e chef ítalo-brasileiro Massimo Ferrari, de São Paulo, SP

IMAGEM

Luciano Pavarotti sendo entrevistado em Módena, na Itália, por J. A. Dias Lopes (ainda de cabelo preto, até porque já se passaram 35 anos…)

Leia também:

A festa da pizza!
Legado italiano
Spaghetti All’assassina: história e receita

0 Comentários

Envie uma Resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*

FOOD FORUM NEWS

Direitos de Copyright Reservados 2024

Entre em contato conosco!

We're not around right now. But you can send us an email and we'll get back to you, asap.

Enviando

Fazer login com suas credenciais

Esqueceu sua senha?