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Os baianos que prezam as tradições gastronômicas da sua terra ficaram incomodados com uma modificação irreverente feita na receita do acarajé, símbolo da culinária batizada de afro-brasileira. Adriana Ferreira dos Santos, a Drica, uma das centenas de mulheres que o vendem em Salvador, capital do Estado, tingiu de cor-de-rosa o bolinho à base de feijão-fradinho ralado ou moído, mais cebola e sal, frito no azeite de dendê, de onde sai sequinho e crocante. Originalmente sem recheio, enriquecem-no por razões comerciais com um molho de camarão seco, vatapá e pimenta-malagueta, às vezes caruru e salada de tomate verde. Fica uma delícia!

Esses complementos, segundo Carlos Ribeiro, cozinheiro, escritor, professor e craque na gastronomia brasileira de raiz, teriam sido adicionados no século XX. “É coisa de uns 65 anos atrás, no máximo”, diz ele. Surgiu para satisfazer o gosto popular e aumentar o apelo comercial do bolinho de feijão fradinho nos tabuleiros de ruas, praças, praias ou shopping centers. Drica é dona de dois pontos de venda com seu nome. Um localiza-se no bairro de Itapuã, em Salvador; outro, no subdistrito local de Paripe.

Ela aplicou à massa do acarajé um corante alimentar cor-de-rosa, geralmente feito com o inofensivo suco de beterraba, ingrediente que se fosse colocado em outra preciosidade gastronômica talvez não provocasse tanta polêmica. O problema é que Drica profanou uma comida sagrada e ritual do candomblé. O bolinho de feijão fradinho tem sempre uma cor amarronzada, até mesmo pela fritura no azeite de dendê. Quando adeptas do candomblé, as chamadas baianas-do-acarajé oferecem-no aos seus orixás, divindades cultuadas na religião introduzida na Bahia pelos negros da etnia iorubana, ioruba, iorubá ou nagô. Sincretizou-se no Brasil, com o catolicismo imposto aos escravos pelos seus senhores, portugueses ou descendentes destes.

Em Salvador, a coordenadora da ABAM – Associação Nacional das Baianas de Acarajé, Rita Maria Ventura dos Santos, comparou a importância litúrgica do bolinho de feijão-fradinho no candomblé com a hóstia consagrada no catolicismo. Além disso, a ABAM tratou a ousadia de Drica como algo profano. Declarou publicamente repudiar “qualquer pessoa que se aproprie das nossas iguarias ancestrais desfazendo do seu formato, modo de feitura e representação sagrada”. Os adeptos do candomblé reagiram no mesmo tom. Instalou-se a polêmica, pois apareceram defensores de Drica nas redes sociais. Uma seguidora dela recorreu à ironia no Instagram: “Faz o acarajé de sushi, amiga”.

Por muito tempo os senhores de escravos vetaram a prática do candomblé, qualificando-a de feitiçaria ou bruxaria. Mas os fiéis reprimidos conseguiram driblá-los entronizando imagens de santos católicos nos altares dos seus terreiros. Na prática, permaneceram cultuando e louvando os orixás. Em 1998, a perseguição havia esmaecido. O candomblé foi regulamentado por decreto municipal; depois, alcançou reconhecimento como patrimônio cultural de Salvador e, em 2004, tornou-se patrimônio cultural material do Brasil, pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Converteu-se em coisa nossa, ou seja, ganhou o status de riqueza brasileira.

Os significados do bolinho de feijão-fradinho são proeminentes. Para a rainha Iansã, uma das mulheres de Xangô, guerreira incansável, orixá dos ventos e tempestades, associada à Santa Bárbara, destinam-se os acarajés pequenos e redondos. Os maiores e alongados são para o forte, autoritário, ágil, generoso e sensual rei Xangô, orixá que comanda os trovões e a justiça, sincretizado como São Jerônimo, São João Batista e São Pedro. A palavra acarajé deriva da língua iorubana. O nome resultou da fusão de acará (bola de fogo) e jé (comer), ou seja, significa “comer bola de fogo”.

Garante-se que o bolinho de feijão-fradinho já chegou na Baía de Todos-os-Santos, da qual Salvador é a porta de entrada, integrado aos princípios da religião dos negros (agora, considera-se politicamente correto dizer pretos) trazidos a força da África Ocidental a partir do século XVI, onde encontram-se hoje a Nigéria, Benin e Togo. Entretanto, Guilherme Radel (1930-2019), professor universitário, escritor e historiador gastronômico, discordou dessa afirmação no livro “A Cozinha Africana da Bahia” (Press Color, Salvador, 2006), registrou um mistério. Afirmou que quase toda a culinária baiana – vatapá, caruru, acaçá, bobó etc. – não surgiu na África, nem nos terreiros de candomblé. Já o acarajé, considerou caso à parte.

Sustentou que a culinária baiana tem por base ingredientes que não existiam na África e só chegaram lá no século XVI, levados pelos portugueses: milho, amendoim, castanha de caju, jiló, maxixe, aipim, farinha de mandioca pimenta-de-cheiro e (pasmem!) feijão-fradinho. Tanto que há um fenômeno. Segundo Radel, a culinária das costas da África Ocidental, de onde vieram as maiores levas de escravos, tem inúmeros pratos “brasileiros”, como são denominadas as comidas que em nosso país compõem a chamada cozinha afro-baiana.

Foi justamente no século XVI que se implantou a servidão dos africanos em nosso país, instituição hedionda que começou em 1535, quando aportou em Salvador o primeiro navio com escravos e só terminou 353 anos depois, 1888, com a assinatura da Lei Áurea, pela Princesa Isabel. Utilizando ingredientes brasileiros, conforme Radel, surgiram pratos adaptados ou criados que alimentaram no começo os escravos nas senzalas, passaram para as casas dos feitores e capatazes, entraram na casa-grande e no sobrado, ao gosto dos senhores coloniais.

Daí porque Radel acreditava que os pratos chamados de afro-brasileiros são, na verdade, afro-portugueses. Mas é impossível negar a influência gigantesca da cultura africana. Na casa-grande do engenho de açúcar ou da fazenda, no sobrado senhorial urbano, quem comandava o fogão e o forno era a mucama. Além de exímia cozinheira, também ajudava nos serviços caseiros e acompanhava a dona da casa em passeios, podendo ainda ser ama de leite.

Por que afirmar que o cremoso vatapá aportou no Brasil com os escravos iorubanos, quando sua receita descende da açorda lusitana? Radel mostrou que o prato teve os ingredientes trocados em Salvador por produtos regionais; e ainda passou a ir ao fogo, ao contrário da açorda lusitana. Em vez da água em ebulição, recebeu leite de coco; o azeite de oliva substituiu o azeite de dendê; o pão molhado continuou a ser incorporado, porém às vezes cedendo lugar à farinha de rosca e ao fubá de milho; as ervas aromáticas foram trocadas pelas especiarias baianas. Da mesma forma que a açorda lusitana, o vatapá baiano leva bacalhau, camarão etc.

O mesmo aconteceu com o caruru, cozido derivado do esparregado português, no qual as nabiças, espinafres e outras verduras picadas e reduzidas a purê são substituídas por quiabo; o azeite de oliva pelo azeite de dendê; o alho pela castanha, por amendoim e camarão seco. Mesmo assim, certos historiadores da gastronomia acreditam que a receita combina as culinárias do Daomé nagô, da Nigéria ioruba, e dos índios da Bahia. No início, o caruru era um refogado de ervas que acompanhava pratos de peixe e carne.

Quanto ao acarajé, pairam sobre ele interrogações. Alguns historiadores da gastronomia, porém, acreditam derivar do falafel dos árabes ou do Oriente Médio. Trata-se de um bolinho frito de grão-de-bico ou de fava moída. Esses ingredientes teriam sido substituídos no acarajé pelo feijão-fradinho. Tempera-se o falafel com alho, cebolinha, salsa, coentro e cominho. Há mais um mistério. Depois de conquistarem a África do Norte, os árabes espalharam-se pela África Ocidental entre os séculos XVI e XVII.

Influenciaram a região do ponto de vista político, militar, religioso (eram muçulmanos) e obviamente gastronômico. O falafel teria acompanhado os invasores. Como e quando os escravos assimilaram seu bolinho de grão-de-bico ou de fava moída se não sabiam fritar e só teriam aprendido essa técnica de cozimento na Bahia? Sua gastronomia baseava-se no assado, no tostado e no cozido, incorporava pouco sal e quase nenhuma hortaliça.

Curiosamente, existe acarajé na África. Chama-se àkàrà na língua iorubana. Radel visitou a Nigéria em 2002 e encontrou o bolinho de feijão-fradinho em Lagos, a maior cidade do país. “Suas casas antigas se parecem com as de Salvador”, comparou. “Em Lagos, os negros que regressaram (após conseguirem alforria concedida ou comprada), introduziram inclusive a Festa do Senhor do Bonfim”. Referiu-se à celebração inter-religiosa realizada em Salvador, na quinta-feira que antecede o segundo domingo após o Dia de Reis, no mês de janeiro. Em Benin a Festa do Senhor do Bonfim igualmente acontece. Já o vatapá e o caruru são receitas que não existem na África.

Conforme Radel, foram as mucamas filhas dos orixás que levaram a cozinha batizada de afro-brasileira para os terreiros de candomblé, onde o bolinho de feijão-fradinho caiu em terra fértil, transformando-se na preciosidade atual. As filhas de Iansã – mulheres devotadas a esse orixá – preparavam acarajés, acondicionavam os bolinhos de feijão-fradinho em palha de banana e os colocavam em gamelas. Depois é que saiam às ruas.

Com o dinheiro amealhado, adquiriam a matéria-prima de suas obrigações (oferendas aos deuses), em mais um motivo para reforçar a condição religiosa do acarajé. Tudo o que elas faziam evolvendo os orixás obedecia ao ritual. No trabalho, vestiam a roupa tradicional: saia comprida e rodada, blusa rendada, xale de algodão colorido, turbante, sandália fechada na frente e aberta atrás e, no pescoço, guias de contas na cor do orixá da sua cabeça ou outros santos de reverência pessoal. Mais tarde, as filhas de Iansã fixaram-se em pontos, onde passaram a servir o acarajé à clientela leiga. Repetiu Instalaram-se em pontos dotados de barracas que as protegiam e resguardavam os tabuleiros do sol e da chuva. Eram e são até agora denominadas baianas-do-acarajé, embora também comercializassem abará, cocada, bolinho de estudante e passarinha (o baço) frita.

Radel afirma que a culinária afro-baiana começou antes da abertura do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, conhecido como Casa Branca, na década de 1830, primeiro terreiro de candomblé em Salvador. “Portanto, só no século XIX ela se transformou na cozinha dos deuses”, assinala. Já o acarajé foi mencionado pela primeira vez no livro “Recompilação de Notícias Soteropolitanas e Brasílicas”, (Imprensa Oficial da Bahia, Salvador, 1921), escrito pelo português Luiz dos Santos Vilhena, que mudou para a capital baiana em fins de 1787. Professor de grego, homem letrado, ele registrou o outro motivo da comercialização do bolinho de feijão-fradinho nas ruas. Muitas sinhás (tratamento dado pelos escravos às suas senhoras) aumentavam a renda doméstica mandando as chamadas escravas de ganho venderem acarajé e demais quitutes de tabuleiro.

Após ser criticada pela ABAM, Drica justificou-se. Alegou que, ao tingir de cor-de-rosa o acarajé, realizou uma ação de marketing para seu negócio. “Eu tenho o acarajé como meio de sobrevivência, de comércio, não sou adepta do candomblé, ou melhor, não o vendo por obrigação religiosa, como muitas das minhas colegas”. Ela já havia alterado um pouco a receita do bolinho de feijão-fradinho: em vez de camarão seco, passou a incorporar o fresco, anunciando a novidade em inscrição afixada nos seus pontos. Explicou também querer homenagear o filme “Barbie”, estrelado por Margot Robbie, sobre a famosa boneca cor-de-rosa, exibido nos cinemas desde 20 de julho.

Como ação de marketing, funcionou. Drica ganhou inesperada notoriedade nacional, sobretudo no Instagram, mesmo sem notabilizar-se pelo preparo do melhor acarajé de Salvador. Entre os mais conceituados atualmente, destacam-se os bolinhos de feijão-fradinho de Cira (Itapoã), Dinha (Rio Vermelho), Dona Emília (Porto da Barra), Loura (Avenida Santa Luzia) e Regina (Rio Vermelho), citados aqui em ordem alfabética, não de excelência, entre outros. Cada apreciador tem sua preferência. A receita encontra-se padronizada pela ABAM.

A influência gastronômica dos senhores portugueses chegou à confeitaria e alcançou o quindim, doce maravilhoso à base de gema de ovo, açúcar e coco ralado. Alguns o identificam como afro-brasileiro. O nome realmente é. Foi dado pelas mucamas, como aconteceu com a maioria dos pratos afro-brasileiros. Quindim significa dengo, meiguice, encanto, graça, pelo fato de ser delicado. Trata-se de substantivo masculino vindo de kénde, do quicongo, língua africana falada em parte do Congo, no Zaire e norte de Angola.

Mas é receita com DNA lusitano. Tem familiares em Portugal, sobretudo na Beira Litoral e Estremadura, em Beja e Évora, no Alentejo, em Azeitão, Cascais e na Costa de Lisboa. Um deles: brisas do lis, também conhecido como de Santa Ana, caraterístico do distrito de Leiria, entre a Beira Litoral e a Estremadura. Lis é um rio que o atravessa. O doce lusitano difere do quindim apenas pela camada de amêndoas picadas, que não existiam no Brasil, substituídas pelo coco ralado.

Faltam às vezes certezas em todas essas questões. Mas nada tira do acarajé a proeminência ritual e, sobretudo, o caráter sagrado que lhe atribuem os adeptos do candomblé. A crítica da ABAM está certa: foi desrespeitoso tingir de cor-de-rosa o bolinho de feijão-fradinho, para homenagear uma boneca. A comparação do acarajé com a hóstia é relativa, porque têm sentidos diferentes no candomblé e no catolicismo. Entretanto, vale fazer uma pergunta. O que aconteceria se Drica fizesse o mesmo com a hóstia católica? À parte outro fato: a cor-de-rosa da Barbie simboliza moda e beleza, delicadeza e fragilidade, além de prevalecer no universo feminino. Portanto, não combina com valores sagrados. Axé, irmão!

ACARAJÉ
Rendimento: cerca de 40 unidades

INGREDIENTES
.2 kg de feijão-fradinho
.4 cebolas
.3 litros de azeite de dendê para a fritura
.Sal a gosto
.Molhos de pimenta-malagueta e de camarão seco para rechear os acarajés

PREPARO
1.Escolha o feijão e deixe-o de molho por uma hora ou duas.
2.Tire todos os olhos pretos do feijão e descarte todas as cascas que saíram durante o tempo em que ficou de molho.
3.Passe o feijão pela máquina de moer, até obter uma massa.
4.Coloque a massa numa panela e bata-a com uma colher de pau, até ficar uniforme.
5.Triture a cebola no liquidificador com o sal a gosto e misture-a à massa do feijão. Continue batendo a massa com a colher de pau, até obter um composto macio e o mais claro possível.
6.Quanto mais leve a massa ficar, mais saboroso será o acarajé.
7.Deite o azeite de dendê no tacho ou numa panela de fundo grosso e leve-o para aquecer.
8.Vá formando bolos com a massa e fritando-os no óleo bem quente até ficarem com uma crosta de coloração dourada, em tons de vermelho.
9.Retire-os e abra-os ao meio antes de esfriarem, pois assim ficarão crocantes. Recheie-os com os molhos de camarão seco e pimenta-malagueta.

(*) Receita da ABAM – Associação Nacional das Baianas de Acarajé, com sede em Salvador, na Bahia.

IMAGENS
1) Acarajé como os orixás gostam, sem recheio, nem corante-cor-de-rosa (Wikipedia).
2) Eu, em Salvador, comendo o acarajé da Cira, que é original e muito bom (Foto: Arquivo Pessoal).

1 Comentário
  1. […] O acarajé cor-de-rosaABRAS revela aumento no consumo de alimentos nos lares brasileirosAgrotóxico causa câncer? […]

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