Já foi bonito e chique retirar com um palito os detritos acumulados nos dentes durante as refeições. Havia até uma regra de etiqueta a ser respeitada. Devia-se manejar com uma mão o bastãozinho geralmente de madeira com e, com a outra, cobrir boca, escondendo-a até a ponta do nariz. Hoje, usar palito de dente em público virou hábito feio, deselegante e condenado pelas boas maneiras. “Fragmentos de comida ficaram presos nos dentes?”, indaga e logo responde Claudia Matarazzo, respeitada especialista brasileira em etiqueta. “Não dá para tirá-los com mão, língua ou palito. Ainda que o palito esteja tentando você, pegue-o discretamente e leve-o para o banheiro”. Danuza Leão, jornalista, escritora e modelo brasileira, era mais inclemente: “Palitar os dentes é algo tão feio que deveria ser feito com a porta do banheiro fechada e a luz apagada”.
Além disso, é hábito desaconselhado pelos dentistas. A moderna odontologia recomenda substituí-lo pelo fio dental e escova de dentes. Qual o argumento dos dentistas? O palito machuca a gengiva, aumenta o espaçamento entre os dentes, danifica seu esmalte e cria ambiente para o ataque das bactérias que causam cáries. Mesmo em crescente declínio, porém, o uso do bastãozinho de madeira permanece em ambientes populares no final das refeições. Algumas pessoas chegam a levantar da mesa com um deles na boca, mastigando-o.
Talvez seja o mais antigo instrumento de higiene bucal. Em fósseis do homem de Neandertal, extinto 28 mil anos atrás, foram encontradas marcas de palito nos dentes. A espécie desaparecida, com a qual o homem moderno conviveu, utilizava talos e espinhos de plantas, penas de aves afiadas nas pontas ou ossos de animais idem. Na Idade do Bronze, que durou aproximadamente de 3300 a.C. a 1200 a.C., apareceram os palitos feitos com essa liga metálica, portanto laváveis e reutilizáveis.
Na Antiguidade, período histórico entre a invenção da escrita e a queda do Império Romano do Ocidente, surgiram os de prata, ouro e de marfim. Os palitos de metal eram moldados por joalheiros, às vezes tinham formatos artísticos. Representavam seres imaginários ou reais, tipo sereias ou aves consideradas sagradas, como o pássaro íbis; e às vezes recebiam incrustações de pedras preciosas. Necessariamente de uso pessoal, converteram-se em objetos de luxo.
Dois personagens são lembrados na história do palito. O primeiro é o tirano Agátocles de Siracusa (361 a.C.-289 a.C.), citado no livro “O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel, de 1532. O célebre filósofo, historiador e poeta florentino, considerado fundador do pensamento e da ciência política moderna, aponta-o como exemplo “daqueles que por seus crimes se tornam príncipes”. Agátocles de Siracusa morreu traído pelo escravo favorito, que envenenou seu palito de dentes.
O segundo personagem é o italiano Paolo Veronese (1528-1588) um dos geniais artistas da Renascença Italiana. Ele pintou “O Casamento de Caná”, o maior quadro exposto no Museu do Louvre, em Paris, pois mede 6,77m por 9,94m, no qual uma mulher jovem, bonita e elegante palita os dentes à mesa. Na Idade Média (476 a 1453), as senhoras abonadas davam-se a esse luxo. Iam aos banquetes carregando um palito exclusivo, a fim de demonstrar riqueza. Exibiam-no sem constrangimento, para que todos as vissem limpando os dentes.
Nos últimos séculos, quem dominou a cena foi o palito de madeira, por ser barato, resistente, flexível, descartável e, portanto, teoricamente mais higiênico. O norte-americano Charles Forster ficou milionário ao produzi-lo em larga escala – e o Brasil contribuiu para seu sucesso. Ele esteve em nosso país a negócios, na segunda metade do século XIX, e ficou encantado com a integridade e brancura dos dentes das mulheres de Pernambuco. Atribuiu a surpresa ao uso do palito de dentes, feito então com madeira de salgueiro (chorão ou vime).
Regressando aos Estados Unidos, associou-se a um inventor de máquinas que o ajudou a criar um equipamento capaz de industrializar, com ótima qualidade, o bastãozinho de madeira. Descobriu que em seu país a madeira ideal era o vidoeiro-branco, árvore comum na Europa, levada para os Estados Unidos. O palito ficava macio e maleável, além do agradável perfume natural. Em torno de 1870, Charles Forster fabricava mais de 1 milhão de unidades por ano.
Em matéria de palito, porém, nenhum país do mundo bateu Portugal. Isso tanto em qualidade como prestígio. Lorvão, freguesia com aproximadamente 4 000 habitantes, no concelho de Penacova, distrito de Coimbra, no Centro de Portugal, foi batizada de “capital do palito” por José Leite de Vasconcellos (1858-1941), ilustre linguista, filólogo, arqueólogo e etnógrafo português.
Localidades próximas, situadas na região de Lorvão, inclusive Coimbra, dedicaram-se igualmente à fabricação de sete tipos diferentes do bastãozinho de madeira, lisos ou trabalhados. No início, eram de salgueiro, como os que Charles Forster encontrou em Pernambuco. Depois, seriam substituídos pela madeira de choupo (álamo). Inauguraram-se fábricas especializadas, mas a atividade sempre ocupou artesanalmente parte da população de Lorvão, que continua até hoje paliteira.
Os palitos começaram a ser feitos séculos atrás por freiras de uma antiquíssima instituição religiosa. Tratava-se do Mosteiro de Santa Maria do Lorvão, que abriu masculino e como centro de produção de manuscritos iluminados. Posteriormente, tornou-se residência, local de oração e trabalho de uma comunidade de freiras. Elas resolveram fazer palitos de madeira para empregar na elaboração e apresentação de doces.
Os portugueses também se notabilizaram pela produção de requintados paliteiros de prata, que receberam elegantemente os bastõezinhos de madeira, fossem roliços e planos, trabalhados ou não. Pela sua beleza, converteram-se em preciosos objetos de decoração da mesa. Debutaram no século XVIII e desfrutaram de esplendor cem anos depois. Ultimamente, os melhores e mais antigos são disputados pelos colecionadores internacionais.
Moldados por prateiros, que na verdade eram hábeis ourives, reproduziam figuras ilustres, que iam do navegador lusitano Vasco da Gama ao imperador dos franceses Napoleão Bonaparte; de nobres famosos a personagens mitológicos, como Netuno, deus romano do mar; de uma criança camponesa levando um cestinho nas costas (onde iam os palitos), aos animais domésticos e selvagens; das frutas às flores. Imitados no Brasil, os prateiros lusitanos inspiraram colegas no Rio de Janeiro e Bahia, autores de paliteiros representando nossos pássaros tipo o sabiá e o beija-flor – e aí por diante.
Evidentemente, o palito continua à venda nos supermercados e oferecido à clientela pelos restaurantes populares brasileiros. De modo geral, sobrevive com outras destinações. Quando pequeno, serve para espetar petiscos, croquetes, queijos em pedaços ou fatias e todos os itens das tábuas de frios; para capturar azeitonas dançantes no aperitivo ou confinar uma delas no fundo do drink dry martini; para manter carnes presas, como a italiana braciola e o multinacional bife rolê, que devem manter seguros os recheios no cozimento, sem esquecer o saltimbocca, prato típico da cozinha romana; para fixar temperos em marinadas de carnes e peixes; para fritar linguiça na frigideira e virá-la do outro lado; e ainda para furar delicadamente o bolo que assa no forno e verificar se está pronto.
Se for palito de dente grande, presta-se à montagem do churrasquinho no espeto e da kafta (espécie de almôndega árabe); e do picolé, caso seja aceito como integrante da mesma família. Todos esses aproveitamentos, porém, nunca devolverão ao palito a glória primitiva. A vida é assim. “Tudo passa, tudo muda, nada é para sempre”, disse a pensadora norte-americana Roberta Thornton. Hábitos, costumes ou usos também. Agora é a vez do palito de dentes.
Receita de braciola italiana para prender com palito
Rendimento: 4 a 6 porções
Ingredientes
Molho vermelho
.1 cenoura picada
.1 cebola picada
.3 colheres (sopa) de azeite de oliva
.4 kg de tomates maduros cortados em quatro partes cada
.1 colher (sobremesa) de orégano
.2 folhas secas de louro
.2 talos de salsão em pequenos cubos, com as folhas .4 colheres (sobremesa) de sal
.3 dentes inteiros de alho
.5 folhas (grandes) de manjericão fresco
.1 colher (sobremesa) de açúcar
.1 copo de vinho tinto
Braciola
.1/2 kg de coxão duro cortado em bifes
.50g de queijo parmesão ralado
.100g de azeitonas pretas sem caroço cortadas pela metade
.Salsinha picada a gosto
.200g de toucinho ou bacon cortado em tiras
.1/2 kg de cenouras cortadas em tiras
.Óleo para fritar a braciola o quanto baste
Modo de preparo
Molho vermelho
1. Em uma panela, refogue a cenoura e a cebola no azeite já aquecido. Adicione os tomates com as peles, o orégano, o louro, o salsão, o sal, os dentes de alho, o manjericão, o açúcar e o vinho.
2. Deixe cozinhar por aproximadamente 2 horas e 30 minutos, em fogo baixo, com a panela tampada, mexendo seguidamente para o molho não grudar no fundo da panela.
3. Após, passe tudo por uma peneira, retorne com o molho à panela e leve novamente ao fogo, desta vez baixíssimo, por mais 1 hora, aproximadamente. Corrija o sal, se necessário. Pingue um pouquinho de água durante o cozimento, se for preciso.
4. Desligue o fogo e reserve esse molho para cozinhar as braciole, na finalização do prato
Braciola
5. Bata os bifes com um batedor de carne, para que fiquem macios e bem abertos. Reserve.
6. Em uma tigela, misture o queijo parmesão com as azeitonas e a salsinha.
7. Recheie os bifes, colocando em cada um deles uma tira de bacon, uma de cenoura e uma colher (sobremesa) da mistura de queijo, azeitonas e salsinha.
8. Enrole os bifes no recheio, deixando-os bem apertados, prenda-os com dois ou mais palitos, se necessário, para que não se abram. Sele-os rapidamente no óleo, em fogo brando.
Finalização
9. Coloque-os na panela com o molho vermelho que estava reservado e deixe-os cozinhar ali por cerca de 1 hora, em fogo brando. Sirva quente, em cima de uma massa, que em São Paulo é fusilli al ferretto.
Receita publicada no livro “Cozinha Cantineira”, lançado em São Paulo, em 1996, por Allan Vila Espejo.
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