O sanduíche beirute tornou-se em São Paulo uma forte atração gastronômica cujo consumo foi estimulado pela industrialização da cidade. As pessoas não tinham tempo suficiente para ir em casa na hora do almoço. Comer um sanduíche era uma opção de refeição veloz e ainda por cima barata. Explicam-se assim as várias receitas surgidas em São Paulo desse alimento constituído por duas ou mais fatias de pão intercaladas com queijo, presunto, mortadela, carne etc. Há por exemplo o Bauru, o Sanduíche de Mortadela do Mercadão, o Sanduíche de Pernil do Estadão, o Sanduíche de Linguiça de Bragança, o Buraco Quente (pão francês e carne moída), Hot Dog com purê e o Beirute, do qual falaremos a seguir, até porque neste início de mês será o motivo de um festival na Associação Hokkaido de Cultura e Assistência, que funciona na Vila Mariana. São Paulo.
O Beiruth, como era grafado, surgiu em 1950 no restaurante Bambi, da Alameda Santos, ou seja, no mesmo ano de fundação da casa famosa que fechou as portas em 2001. Recebeu influências da combinação de presunto e queijo do misto-quente e da harmonização do rosbife em fatias com queijo do Bauru, inventado em 1937. A receita atual do Beirute varia no Brasil inteiro, porém a original resume-se a um pão árabe (aquele de formato redondo, chato e oco) aberto, recheado com fatias finas de rosbife, rodelas de tomate e de pepino em conserva, lâminas de mozzarella e orégano; é cortado em quatro partes.
Seu inventor foi o libanês Fares Sader (1918-70), que imigrou para o Brasil e se associou ao irmão Louis Sader para abrir o Bambi, por muito tempo um dos melhores restaurantes de cozinha árabe de São Paulo. Até hoje a clientela saudosa lembra de seu Kibe cru, Michui, Kafta, Homus, Steak Siberiana e da generosa salada de tomate, além de sobremesas exclusivas à base de sorvete, como Hagibaba, Lollobrigida e Chocolt (chocolate) Mou (pastoso) Mud (lama), popularizado como Chocolamur.
“Orgulho-me do meu marido ter inventado o Beirute”, afirmou anos atrás Nazima Buraad Sader, viúva de Fares. “Deu-lhe o nome de Beirute para homenagear sua cidade natal”. Os fundadores do Bambi eram do ramo. O pai deles havia sido sócio da confeitaria A. F. Sader & Frères, uma das melhores e mais refinadas da capital libanesa. A casa notabilizava-se tanto pela produção de chocolates e doces, como pela cozinha do restaurante anexo.
A. F. Sader & Frères convidava pâtissiers e chefs estrangeiros para exibições grandiosas em Beirute. Depois da morte do pai, Fares correu o mundo. Passou por Bagdá, Montevidéu, Caracas e, finalmente, instalou-se em São Paulo, onde o irmão já se encontrava. Conheceu Nazima, filha de libaneses e cuja mãe também assinava Sader, que lhe deu três filhos.
Era talentoso pâtissier, tendo sido um dos primeiros chocolatiers do Brasil (fazia inclusive gianduia, mistura de 70% de chocolate e 30% de creme de avelã.), além de exímio cozinheiro. Quando morreu, em 1970, com apenas 52 anos de idade, a mulher e os filhos passaram a cuidar do Flamingo, na Rua Augusta, outro endereço concorrido de cozinha árabe em São Paulo. Mantiveram a casa até 1983, quando encerraram o negócio. Louis e os filhos ficaram com o Bambi, que acabou registrando a marca Chocolamur no INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial), em 1985. Enquanto as duas casas existiram, os cardápios se assemelhavam. Mudavam apenas os nomes dos pratos.
“Hoje, chamam de Beirute quase tudo o que é feito no pão árabe”, lamenta Nazima. No seu restaurante, as variações do sanduíche se intitulavam Flamingo (mozzarella, ovo frito, cafta e tomate; e Augusta (mozzarella; presunto, filé mignon picadinho, tomate e orégano). Na casa-mãe, figuravam como Bambi 54 e Bambi 59. Continuam a existir excelentes Beirutes tradicionais em São Paulo. O do Frevo da Rua Oscar Freire é extraordinário. Divide o cardápio com outras dez receitas heterodoxas, inclusive com o denominado Naturalíssimo ou Vegetariano: pão sírio, palmito, cenoura, queijo derretido e maionese.
O Beirute tradicional do Arabesco da Rua Cardoso de Almeida é igualmente muito bom, junto com cinco variações. E o da rede América, que incorpora alface, tomate, queijo prato, maionese, relish de pepino e obviamente no pão sírio, destaca-se também pela qualidade. Tem as opções de levar peito de peru, filet de peito de frango e paillard de filet mignon. “O pão é o sustento da vida e o sanduíche sua riqueza”, diz o povo. Qual deles? O povo russo, embora creditar-lhe esse provérbio seja politicamente incorreto no momento. Pelo menos no Ocidente.
P.S. Este texto tem como base um dos capítulos do meu livro “Sanduíche! Impossível Resistir a Essa Tentação”, lançado em 2018 pela Editora Melhoramentos, de São Paulo, SP.
Receita de beirute: deliciosa e fácil de fazer
Rende 1 sanduíche
Ingredientes
.1/2 kg de lagarto limpo, sem gordura (essa quantidade de carne dá para uns 6 ou mais sanduíches)
.1 tomate
.1 pão árabe
.5 fatias finas de mozzarella
.Orégano para salpicar (inicialmente za’atar ou zátar, mistura de especiarias originária do Oriente Médio, substituída porque muitos clientes não gostavam)
.Sal a gosto
Modo de preparo
1.Em uma panela (pode ser de pressão), cozinhe a carne em água com sal, até ficar macia. Evite que passe demais, para não perder o suco.
2.Depois de fria, corte a carne em finas fatias. Para um beirute serão utilizadas quatro a cinco fatias. Congele a carne que sobrou para usar em outras preparações.
3.Corte o tomate, com casca, em quatro fatias finas e salpique-as com sal.
4.Abra o pão árabe ao meio. De um lado do pão, coloque quatro a cinco finas fatias de rosbife e, em cima, as rodelas de tomate. Do outro lado, disponha as fatias de mozzarella e salpique com um pouco de orégano.
5.Leve as duas metades (abertas) ao forno bem quente (250ºC), por cerca de 5 minutos. Retire, feche o beirute e retorne com ele ao forno, por mais 5 minutos.
6.Sirva o sanduíche imediatamente, cortado em quatro partes.
Receita do libanês Fares Sader, o criador do sanduíche.
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