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Com a dispersão forçada, que os obrigou a encontrar lugares para sobreviver em um mundo no qual eram perseguidos, os judeus de Roma desenvolveram linhas diferentes de cozinha, apesar de todas serem balizadas pelas normas da sua religião. As duas mais conhecidas surgiram entre os asquenazes, originários da Europa Central; e os sefarditas, da Península Ibérica, de onde foram expulsos em massa no ano de 1492. Mas há outra linha, consagrada pela criatividade e sabor extraordinários: a Cucina Giudaico-Romanesca, obviamente dos hebreus de Roma. Surgiu no centro histórico da capital italiana, entre a Praça Veneza e o Rio Tibre, por obra dos italkim (assim se autodenominam modernamente, não se considerando askenazi, nem sefaradim).

É ali que se localiza o histórico Ghetto Ebraico, um dos mais antigos do mundo, instituído em 1555 pelo Papa Paulo IV. Os judeus foram confinados naquele local e obrigados a viver em condições lamentáveis. As dificuldades só esmaeceram depois de muito tempo e daí terem criado uma cozinha com ingredientes baratos, como os miúdos e ossos de bovinos, ovinos, caprinos e aves, verduras e legumes de cultivo e preparo descomplicados, e sobras de alimentos. Os restos e as aparas dos peixes do mercado de Roma, por exemplo, eram recolhidos pelas mulheres judias e transformados em uma sopa muito saborosa, que passaram a servir no Pessach, a Páscoa celebrativa de sua libertação da escravidão no Egito. Quando a vida melhorou, o prato ficou mais saboroso. Hoje, a Zuppa di Pesce virou apetitoso purê engrossado com batata e enriquecido com cenoura, aipo, cebola e salsinha, além de receber um toque requintado de açafrão. É encontrada em vários restaurantes do Ghetto Ebraico. O peixe agora é de carne branca, podendo ser filé de linguado ou badejo.

O bairro dos judeus de Roma conserva ruas estreitas, prédios medievais e renascentistas. Dominado pela Via del Portico d’Ottavia, localiza-se atrás da Grande Sinagoga de Roma ou Tempio Maggiore di Roma, de 1904. Congrega desde a osteria (o estabelecimento simples que serve refeições) até o restaurante sofisticado, do alimentari (loja de gêneros alimentícios) à macelleria (açougue), passando pela padaria e a confeitaria. São lugares que trabalham com alimentos kasher – apropriados para o consumo segundo as leis religiosas judaicas. Assim, em nenhuma receita preparada entra a carne de porco, banida pelo capítulo XI do Levítico.

Além disso, os judeus só podem comer a carne dos quadrúpedes que possuem o “casco separado” sejam ruminantes, como o boi, o carneiro e o cabrito. Suas leis religiosas interditam as aves noturnas e de rapina. Os peixes permitidos devem ter barbatanas e escamas – e, por isso, na cozinha dos hebreus observantes não entram crustáceos, como o camarão, nem moluscos, como a ostra. Já o Êxodo 23:19 proíbe a mistura de carne com leite, na panela ou à mesa. A prescrição é claríssima. “Não cozerás o cabrito no leite de sua mãe”.

Os judeus de Roma formam hoje a mais antiga comunidade hebraica da Europa. Estão na cidade desde o Império Romano. Foram escravos, ajudaram a construir o Coliseu e outros grandes monumentos. Ao longo dos séculos, atuaram como guardiões da melhor tradição culinária de Roma. Sua cozinha – justamente por ser balizada por normas religiosas – resistiu à diferentes influências das invasões da cidade, ocorridas com a decadência do Império Romano.

Incorpora pratos populares da culinária italiana e usa seus temperos clássicos, como alecrim, sálvia e manjericão. Mas se fosse necessário indicar um ingrediente que ninguém prepara melhor seria a alcachofra. Eles explicam a predileção por essa planta caracterizada pelo formato de flor e o coração generoso. ”As alcachofras são amargas e, por isso, simbolizam parte da nossa história”, teorizam. O prato mais emblemático preparado com ela é Carciofo alla Giudia. Trata-se de uma alcachofra que frita inteira no azeite e fica crocante desde a primeira dentada. Outro prato irresistível é Crema di Carciofi d’Ester, uma sopa servida na festa que celebra a vitória da sobrevivência judaica sob domínio persa. Homenageia a rainha persa originária da Judeia, cuja história é contada no livro sagrado homônimo.

Os judeus romanos também apreciam muito grão- de-bico e ervilha. Com o primeiro ingrediente fazem Pasta e Ceci. É uma massa cozida com grão-de-bico. Já o segundo entra na receita de Riso in Umido con Piselli, arroz levemente molhado com ervilhas. Sem esquecer a paixão por Fiori di Zucca Ripieni, flores de abobrinha recheadas com ricota; e Risotto alla Romana con Rigaglie di Pollo, risoto com miúdos de frango. Quanto aos pães, destaca-se o doce Treccia, elaborado sem fermento, recheado com uvas passas e frutas cristalizadas. Chamam-no também de Tutto Uguale, por levar quantidades idênticas de açúcar, manteiga e farinha de trigo. Por falar em doce, impossível esquecer da Torta di Ricotta com Scaglie (flocos) di Cioccolata.

Em nenhum lugar do mundo os judeus dispensam os significados da mesa. Os habitantes do Ghetto Ebraico são exemplos. Quem admira os italianos por transformarem a mesa em uma celebração diária, não sabe o que ela representa para os judeus. Eles a convertem em momento de partilha e solidariedade; usam-na para estreitar laços familiares e de amizade; e, quando observantes, para agradecer a Deus por alimentar seu povo. A mesa é, portanto, muito mais do que um móvel sobre o qual há comida. Convertem-na em espécie de altar votivo. Não por acaso, falando sobre a felicidade no lar, o Salmo 128.3 diz: “Tua esposa será videira fecunda no interior de tua casa; teus filhos, rebentos da oliveira ao redor de tua mesa”.

Dica

Um dos restaurantes mais característicos do Ghetto Ebraico é o Piperno, que frequentamos em Roma. Funciona desde 1963 na Via Monte dè Cenci, 9, tel.: 39 06 6880 6629.

Judeus de Roma – Receita de Carciofi Alla Giudia

Rendimento: 06 porções

Ingredientes

– 6 alcachofras

– Suco de limão o quanto baste

– Abundante azeite (para fritar)

– Sal e pimenta a gosto

Modo de preparo

1.Limpe bem as alcachofras, retirando-lhes apenas as partes das folhas externas mais duras.

2.Coloque as alcachofras em um recipiente grande com água fria acidulada com suco de limão.

3.Em uma panela de borda alta, aqueça bem o azeite.

4.Retire as alcachofras da água, escorra-as e enxugue-as bem. Segure-as uma a uma pelos talos e comprima-as sobre a mesa, de modo que as folhas se abram.

5.Tempere-as com sal e pimenta internamente e leve-as, poucas por vez, a fritar no azeite quente. Gire-as de vez em quando.

6.Assim que estiverem douradas e com as folhas crocantes, retire-as do azeite, escorra-as e coloque-as em papel-toalha.

7.Transfira-as para um prato quente, pulverize-as com um pouco de sal e sirva-as.

8.Ficam ótimas quentes, mas também podem ser servidas mornas ou mesmo frias.

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1 Comentário
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