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O Brasil festeja em 2022 os cem anos da Semana de Arte Moderna – os sete dias consecutivos de celebrações voltadas às artes plásticas, literatura, música, arquitetura e avivamento intelectual, transcorridos entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. Compatriotas de todas as regiões nacionais hastearam a sua bandeira. A também chamada Semana de 22 caracterizou-se pelo rompimento radical com a cultura e a arte conservadoras, vigentes no país desde o século XIX. Não por acaso, os holofotes acabaram iluminando uma de suas principais figuras: o poeta, escritor, romancista, contista, ensaísta, folclorista, crítico e historiador de arte, musicólogo, professor de piano, fotógrafo e agitador cultural Mário de Andrade, nascido em São Paulo a 9 de outubro de 1893.

A ele se atribui a instituição da poesia brasileira moderna, com a publicação do livro “Pauliceia Desvairada”, assinalado pelo “revolucionário” uso livre da métrica. Ninguém contesta a proeminência de Mário de Andrade.

Oswald de Andrade (sem nenhum parentesco com o poeta e escritor), que dividiu com ele a liderança intelectual do movimento, também foi destaque eloquente. Outros modernistas: Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Ronald de Carvalho, Heitor Villa-Lobos, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral (que se encontrava em Paris na Semana de 22), Di Cavalcanti, Victor Brecheret, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, Plínio Salgado, Tácito de Almeida e Agenor Fernandes Barbosa. Entretanto, Mário de Andrade, que morreu em São Paulo a 25 de fevereiro de 1945, acabou elevado ao altar como a figura emblemática do movimento. Contribuíram para essa divinização a permanente atualidade de sua obra e a profunda identificação do autor de outro livro antológico, intitulado “Macunaíma”, publicado em 1928, com a alma nacional.

Mário de Andrade demonstrava à mesa um interesse equivalente manifestado nos livros pelas fontes genuínas da cultura e da realidade brasileiras. As viagens que realizou a Minas Gerais, Amazonas e Nordeste, entre 1924 e 1929, resultaram na obra “O Turista Aprendiz”, publicada em 1977 (póstuma). Documenta o apreço desmesurado do autor pelos ingredientes e receitas nacionais. Mais tupiniquim, impossível! Ele levava a sério e investigava a fundo tudo o que fosse nosso.

Em Salvador, visitou a Petisqueira Baiana, onde se encantou com o vatapá e a moqueca de peixe. Provou inclusive o efó – prato à base de camarão seco, pimenta-malagueta, alho, cebola, azeite de dendê, língua-de-vaca ou taioba. Achou-o “gostosíssimo”, mas pesado. Brincou com seu efeito no aparelho digestivo: “O efó, assim preparado, é o único prato masoquista que conheço. Você come e tem a sensação convulsionante de estar sendo comido por dentro”. Em, Belém, elogiou o pato ao tucupi e o leitão com farinha-d’água. Deslumbrou-se com as frutas e sobremesas regionais. Saboreou a compota de bacuri e o sorvete de murici, que na sua opinião “tem gosto de queijo parmesão ralado com açúcar”.

Mário de Andrade amava as sobremesas. Nunca faltou doce de batata-doce na casa da Rua Lopes Chaves nº 546, no bairro paulistano da Barra Funda, onde morava com a mãe Maria Luísa, ou Mariquinha, e a tia Ana Francisca, ou Nhanhã. Viveu ali até ser fulminado por um ataque cardíaco. Mas tinha que ser doce de batata rosada e não roxa ou branca. Também apreciava o de abóbora. Seus herdeiros conservam um caderninho de capa dura com 34 páginas e 131 receitas de sobremesas.

Foram anotadas por duas letras femininas, provavelmente de Dona Mariquinha e Dona Nhanhã. Eram as receitas favoritas da casa. A mãe e a tia se notabilizavam como exímias doceiras. Trabalhavam para fora, recebendo contínuos pedidos. Segundo as informações do caderninho, vendiam amanteigados, biscoitinhos de polvilho, bons-bocados, broas de coco, sonhos de massa cozida, pastéis de nata e outras delícias imperdíveis. Os doces de Dona Mariquinha e Dona Nhanhã eram servidos em batizados, aniversários, noivados e casamentos.

A casa de Mário de Andrade vivia em festa. No anexo de seu quarto, onde estavam os livros de sua imensa biblioteca, o poeta e escritor recebia os amigos. Apareciam doze, quinze pessoas de uma só vez, entre colegas escritores, artistas plásticos, músicos etc. Trocavam ideias, discutiam literatura e artes em geral, recitavam poesias ou participavam de saraus animados pelo piano tocado pelo anfitrião. Saboreavam doces brasileiros, bebiam licores caseiros e aguardentes de cana. Mário de Andrade apreciava a cachaça pernambucana Manjopina, fermentada e destilada no histórico Engenho Monjope, construído no início do século XVIII em Igarassu, perto do Recife.

Quando havia almoço ou jantar para os convidados, eles passavam primeiro na cozinha, para cumprimentar Tana ou Bastiana, nascida Sebastiana Campos, craque no forno e fogão de lenha. Também bisbilhotavam a comida, embriagavam-se com seu aroma delicioso. Só depois se dirigiam ao anexo ou à sala de refeições. A imbatível cozinheira preparava tanto receitas simples como requintadas. Trabalhou quase meio século com a família do poeta e escritor, até morrer na década de 1970. A lembrança dos seus pratos ainda hoje provoca suspiros. Há uma linda foto de Tana, segurando nos braços, orgulhosa e sorridente, os dois sobrinhos do poeta e escritor (que morreu solteiro), ainda crianças, Carlos e Thereza.

Mário de Andrade adorava particularmente as empadinhas de Tana, fossem de palmito, frango ou camarão. Ela as fazia conforme antiga receita. Levavam manteiga, banha de porco e um pouco de água salgada. Um dia ensinaram a Tana uma nova massa de empadinha. Mário de Andrade a provou e não gostou. Achou-a dura e se dirigiu à cozinha incomodado. “Se eu jogar uma destas empadinhas na parede ela não arrebenta”, reclamou.

Os pastéis de Tana eram sublimes. Ninguém preparava um bife na manteiga igual ao dela. A mesa precisava receber mais cadeiras quando o cardápio incluía bife. Também eram divinas as tortas de palmito e de frango. Tana fazia uma paçoca de carne (lagarto) extraordinária. O poeta e escritor dizia não conhecer outra igual. Desfiava a carne, fritava e batia no velho pilão de madeira da casa. Um dia chegaram diversos peixes da Amazônia, enviados por um amigo de Mário de Andrade. Vieram embalados em barras de gelo cobertas de serragem. Havia tucunaré e tambaqui, por exemplo. Tana ficou horas limpando os peixes no quintal. Preparou-os de diversas maneiras. Jamais se queixou desse e de outros trabalhos enormes. Adorava cozinhar para bastante gente. Gostava de atender pedidos de pratos especiais.

O grande poeta e escritor admirava seu talento, embora não soubesse cozinhar. Mas sabia dar instruções precisas a Tana sobre como queria os pratos favoritos. No conto “O Peru de Natal”, do livro “Contos Novos”, Mário de Andrade relata o preparo dessa ave com detalhes de mestre-cuca. Descreve com água na boca as duas farofas, “a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga”. Usa a primeira receita para rechear o papo do peru, acrescida de ameixa-preta, nozes e um cálice de xerez.

A seguir, fala da comilança com requintes de crítico gastronômico: “A carne mansa de um tecido muito tênue, boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa-preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz”. “O Peru de Natal” é um conto parcialmente autobiográfico. O personagem vive com a mãe viúva, uma tia e a irmã, em condições semelhantes à do romancista e poeta. Brasileiríssimos, os hábitos gastronômicos de Mário de Andrade ajudam a traçar o perfil de um dos heróis nacionais, cuja influência sobre todas as nossas atividades culturais permanece imensa.

Empadinhas de palmito: receita da família de Mário de Andrade

Rende cerca de 20 empadinhas

Ingredientes

MASSA

.2 xícaras (chá) de farinha de trigo

.3 colheres (sopa) de manteiga em temperatura ambiente

.4 colheres (sopa) de banha de porco (na falta, use toucinho derretido)

.1 ovo (grande)

.Água temperada com uma pitada de sal (para a massa não ficar quebradiça)

.1 ou 2 gemas de ovos para pincelar a massa

RECHEIO

.1 cebola média ralada

.2 dentes de alho bem amassados

.3 colheres (sopa) de óleo

.1 tomate sem pele e sem sementes bem picado

.1 vidro de palmito bem picado, com ¼ de sua água

.1 colher (sopa) rasa de farinha de trigo

.3/4 de um copo de leite

.2 ovos cozidos duros bem picados

.1 colher (sopa) de azeitonas verdes picadas

.2 colheres (sopa) de salsinha picada

.Sal e pimenta-do-reino moída na hora a gosto

Modo de preparo

MASSA

1. Em uma tigela, coloque a farinha, acrescente a manteiga, a banha e misture.

2. Incorpore o ovo, mexendo a massa com as mãos e vá juntando água, aos poucos, misturando cuidadosamente, sem amassar muito, até dar o ponto, obtendo um composto homogêneo.

3. Reserve.

RECHEIO

4. Refogue a cebola e o alho no óleo, junte o tomate e cozinhe-o até desmanchar.

5. Acrescente o palmito picado, com um pouco de sua água, e deixe cozinhar em fogo baixo, por cerca de 10 minutos.

6. Dissolva a farinha de trigo no leite e junte essa mistura ao refogado de palmito. Cozinhe por mais uns 5 minutos, para desaparecer o gosto da farinha. Corrija o sal e tempere com a pimenta-do-reino.

7. No final, incorpore os ovos cozidos picados, as azeitonas e a salsinha. Deixe esfriar antes de utilizar.

Finalização

8. Abra a massa bem fina e coloque-a nas forminhas. Quanto mais fina ela ficar, melhor será o resultado.

9. Coloque o recheio e tampe com a massa, também finíssima.

10. Pincele a massa com as gemas, cuidando para não atingir as bordas das forminhas.

11. Asse no forno entre médio (180°C) e alto (200°C), por 30-40 minutos, até as empadinhas ficarem douradas.

P.S. Crônica transformada em um dos capítulos do meu livro “A Canja do Imperador” (Companhia Editora Nacional, São Paulo, SP, 2004). Foi revisada, ampliada e atualizada parcialmente para este post.

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2 Comentários
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