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Um biscoito popular no Carnaval de Veneza que os imigrantes italianos trouxeram para a Serra Gaúcha, deram-lhe um apelido divertido e passaram a saboreá-lo o ano inteiro

Por José Antônio Dias Lopes

O Brasil realiza o maior e mais famoso Carnaval do mundo, mas não desenvolveu uma comida especial para a folia, como alguns países europeus. Só o Paraná tem um prato para os dias da grande festa popular: o barreado, criado pelos caboclos do litoral, com influência da cozinha açoriana. A receita foi introduzida e adaptada pelos imigrantes portugueses que chegaram ao litoral do estado no século XVIII. Mas, a partir da década de 1970, converteu-se em porta-bandeira da culinária do Paraná e deixou de ser prato exclusivo da celebração pública. Agora, é preparada o ano inteiro. Até pouco tempo, os foliões brasileiros em geral também restauravam o corpo exaurido pelos saracoteios carnavalescos, tomando a boa e regeneradora canja de galinha.

O país que tem o acervo mais numeroso de comidas populares para a folia talvez seja a Itália. Prepara sobretudo docinhos fritos, sempre em enorme quantidade e conforme receitas que variam segundo a região do país. Os nomes mudam. Chamam-se cenci e donzelle na Toscana; frappe e sfrappole na Emília; lattughe e chiacchiere na Lombardia; bugie no Piemonte, grostoli, crostoli ou crustoli no Trentino-Alto Ádige e no Vêneto (onde ainda recebe o nome de galani). No geral, consistem em massinhas fritas, à base de farinha de trigo, açúcar, ovos e fermento, polvilhadas no final com uma mistura de açúcar e canela. De todas, a que desembarcou no Brasil e ficou, alcançando sucesso principalmente na Serra Gaúcha, foi o grostoli, apesar de não ser um docinho de Carnaval, como na Itália. Aqui, seu consumo acontece no ano todo. O mesmo sucede no interior de Santa Catarina e do Paraná.

O grostoli foi contribuição dos imigrantes ou colonos italianos que se instalaram no Rio Grande do Sul entre 1875 a 1914, portanto, há 150 anos, comemorados em 2025. Procediam do Nordeste e Norte da terra natal, ou melhor, do Vêneto, Lombardia e Tirol (região histórica agora dividida entre o Trentino-Alto Ádige, e o estado do Tirol, na Áustria); e também do Friuli Venezia Giulia, Piemonte, Emília-Romanha, Toscana e Ligúria. Assim que ocuparam as terras montanhosas e devolutas do nordeste do Rio Grande do Sul, os italianos procuraram manter seus antigos hábitos alimentares. Mas tiveram que mudar alguns por falta dos ingredientes primitivos.

Esse, porém, não foi o caso do grostoli, ao qual deram um apelido divertido: cueca virada. Também o designam ceroula, calça ou orelha viradas; orelha de gato; e por aí adiante. Circula na Serra Gaúcha uma explicação para a denominação cueca virada. Seria pelo seu formato. Lembraria a peça íntima do vestuário masculino quando retirada do corpo após o uso e deixada do avesso. As áreas de colonização alemã e adjacências do Rio Grande do Sul dispõem igualmente de uma cueca virada. Entretanto, batizam-na de howwel-spän, que significa em um dialeto germânico “as aparas de plaina” (os resíduos de madeira que são gerados durante o processo de serragem).

Na Serra Gaúcha, a cueca virada enriquece o café da manhã, acompanha o cafezinho, servido em qualquer hora do dia, e o chimarrão. Oferecem-na gentilmente às visitas – hospitalidade acolhedora é uma dos encantos do povo da região. “A cueca virada tem gosto das casas da avó e da madrinha”, festejam. Não pode faltar nas comemorações dos aniversários e festas de família, como batizados, casamentos e nas sagras (festas religiosas com diversões, jogos populares e comidas típicas). “Te le sagre e nosse i crostoli no i pol mancar in tola”, dizem os colonos em dialeto Vêneto. Enfim, alimenta inclusive os trabalhadores rurais.

Em outros países da Europa, é invariavelmente um doce de Natal e Ano Novo, que afunda na tradição. Em Portugal, há o cascorão (fala-se habitualmente no plural, cascorões), tirinhas fritas muito apreciadas nos festejos de dezembro. Afinal, a família da cueca virada espalhou-se no Velho Continente durante o Império Romano, que durou cinco séculos, de 27 a.C. a 476 d.C. Preparava-se na época um biscoitinho frito, quase sempre redondo, batizado de frictilia. Distribuíam-no durante a Saturnália, a festa pagã que celebrava o deus Saturno, da agricultura, saudando as colheitas dos meses anteriores e a chegada do inverno. Era uma das maiores celebrações do ano e começava em 17 de dezembro, podendo durar até o dia 23. Assinalavam-na trocas de presentes, banquetes, música, dança, jogos, brincadeiras e desregramentos.

Os descendentes dos imigrantes italianos também preparam em vários lugares do Brasil um docinho napolitano feito de bolinhas fritas de massa e calda de mel, que não se relacionaria ao Império Romano e sim com a Grécia Antiga. Tem versões semelhantes na Calábria e na Úmbria. Não por acaso, batizaram-no de bolinhas de mel, embora o nome oficial seja struffoli. Também vai à mesa no Natal e nas celebrações de dezembro. As bolinhas são dadas às pessoas dentro de um saquinho enfeitado ou em uma pequena tigela, com votos de um novo ano repleto de coisas boas. Uma das hipóteses é que o nome derivaria do grego strongoulos, ou seja, redondo. Trata-se do doce de infância da atriz Regina Duarte (a mãe, nascida no Rio Grande do Sul, tinha ascendência italiana). Na casa dela, strufffoli era uma espécie de bolo, ou seja, um cone de bolinhas acrescidas não só de mel, mas de frutas cristalizadas e pequenos confeitos de enfeite.

A Igreja Católica só conseguiu acabar com a Saturnália depois que o papa Júlio I, no século IV d. C., instituiu 25 de dezembro como o dia do Natal, ou seja, do nascimento de Jesus. Afinal, é impossível precisar a data em que veio ao mundo a figura central do cristianismo, que a maior parte das denominações cristãs, além dos judeus messiânicos, consideram ser o Filho de Deus. Com a consolidação do cristianismo e o Natal a 25 de dezembro, a festa pagã, devidamente cristianizada, continuou sendo celebrada, porém sem o culto a Saturno e com os antigos desregramentos reprimidos. Os docinhos fritos sobreviveram e chegaram até nossos dias. E como ingressaram no Carnaval? De certa forma, a Saturnália também era uma folia. Ziriguidum, cueca virada!

CUECA VIRADA

Rende cerca de 30 unidades

INGREDIENTES

MASSA

  • 1 Kg de farinha de trigo
  • 1 xícara (chá) de açúcar
  • 4 ovos
  • 1xícara (café) de óleo de milho ou girassol
  • 1 xícara (chá) de leite integral
  • 1 colher (sopa) cheia de fermento químico em pó Royal

FINALIZAÇÃO

  • Óleo quente para a fritura
  • Açúcar e canela para polvilhar

PREPARO

  • Misture todos os ingredientes da massa, amasse-a bem e deixe-a descansar.
  • Depois, faça as cuecas, partindo a massa em retângulos, depois cortando uma parte no centro de cada retângulo e virando as duas pontas.
  • Para a finalização, frite as cuecas no óleo quente e polvilhe-as com açúcar e canela. Ou só no açúcar, se preferir.

*José Antônio Dias Lopes é jornalista e escritor especializado em gastronomia histórica e colaborador do Food Forum News. Entre em contato conosco para projetos editoriais com o autor sobre temas de história da gastronomia.

Texto original publicado no perfil Facebook do autor.


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