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Por J. Antônio Dias Lopes

Longe de ser uma nova receita italiana no Brasil, a bruschetta é preparada há tempos em nosso país. As antigas cantinas ítalo-paulistanas servem-na desde a primeira metade do século XX. Bruschetta define uma fatia de pão tostado na grelha ou no forno, sobre a qual vão azeite e alho esfregado, às vezes sal e pimenta-do-reino. Resulta extremamente apetitosa quando finalizada com pedacinhos tenros de tomate e folhas perfumadas do manjericão.

Muitas cantinas ainda a preparam da maneira povera, como falam os italianos. A fatia de pão é pequena e fina. Condimentam-na apenas com alho e orégano. Servem-na aos clientes que se encontram na fila de espera, aguardando mesa para ocupar. Ou, então, junto com uma salada mista. Chamam-na de torrada de alho ou com alho. Devidamente incrementada, vira bruschetta. Gêmeas univitelinas, as duas versões fazem sucesso até pela facilidade de preparo. Confirmam a sentença italiana: “in cucina, come nella vita, vince la simplicità”.

Mas a bruschetta virou antepasto generalizado no Brasil. Tornou-se acepipe de boas-vindas nas refeições. Glorifica-se nos restaurantes com DNA italiano. Por que uma receita genuinamente camponesa, criada para reaproveitar o pão dormido, às vezes endurecido, conquistou tanto prestígio urbano? Pela sedução do grande sabor e extrema versatilidade. Atualmente, comporta variações, algumas ortodoxas, como as que levam coberturas de creme de azeitona ou de alcachofra, pedaços de berinjela, pimentão, salame e certos embutidos; outras, nem tanto.

Prova da popularidade da bruschetta no Brasil será uma prova marcada para o próximo dia 27 de agosto, na Festa de Achiropita, no bairro do Bixiga, em São Paulo, celebração popular que dura o mês inteiro. O chef hispano-italiano Allan Vila Espejo realizará uma proeza que vai parar no “Guinness World Records”. Fará a maior bruschetta do mundo, com mais de 60 metros de comprimento. Contará com o patrocínio da Conservas Olé, de São Paulo, empresa fundada em 1969, no bairro da Mooca, por um filho de imigrantes italianos, que industrializa conceituasos produtos alimentícios, inclusive tomate pelado. O recorde anterior pertencia à Itália. A 8 de junho de 2019, os napolitanos prepararam na Piazza Dante, atração histórica da sua cidade, uma bruschetta medindo 52,5 metros de comprimento.

Grande cozinheiro e sócio-proprietário das cantinas paulistanas Don Pepe Di Napoli, Allan Vila Espejo coleciona recordes. Já fez a maior paella do Brasil, para 3.000 pessoas; a maior braciola (bife enrolado, recheado com cenoura, bacon, queijo tipo parmesão, azeitona e salsinha, ligeiramente frito e cozido no molho de tomate) do mundo, que pesava 180 kg e media dois metros de comprimento; e o maior picadinho do mundo, elaborado com 6.000 kg de carne, que viraram 4.500 kg depois de cozidos.

A Festa de Achiropita é ocasião privilegiada para exibições gastronômicas. Trata-se de uma comemoração religiosa com objetivos piedosos e culturais. Entre outras atrações, reaviva a cozinha ítalo-paulistana. Além da óbvia bruchetta, difunde receitas como pizza, fogazza, massas em geral, sardella, alicella, doces típicos, suco de uva, vinho etc. Enfim, permite que uma multidão saboreie especialidades introduzidas, adaptadas ou criadas em São Paulo pelos calabreses, napolitanos, sicilianos, apulienses (pugliesi) e lucanos. Todos esses imigrantes meridionais instalaram-se na cidade de São Paulo entre o final do século XIX e início do seguinte, promovendo o desenvolvimento local.

A Festa de Achiropita celebra uma devoção religiosa trazida pelos calabreses, porém adotada por todos os seus patrícios. Tornou-se uma das mais expressivas comemorações italianas no Brasil. Homenageia Nossa Senhora Achiropita, uma das invocações de Maria, a sublime mulher identificada no Novo Testamento e no Alcorão como a mãe de Jesus por intervenção divina. A Igreja Católica declarou-a padroeira do Bixiga, um dos bairros de São Paulo povoados pelos italianos meridionais.

Segundo a devoção católica, no ano 580 uma autoridade da atual região da Calábria contratou artistas plásticos de Constantinopla, capital do antigo Império Bizantino, para pintar na hoje catedral de Rossano, perto de Cosenza, um retrato de Maria. Mas a encomenda enfrentou problema inesperado. A figura que era pintada de dia apagava-se misteriosamente de noite. Intrigada com o fenômeno, a autoridade ordenou que o templo fosse severamente vigiado. Um guarda passou a ficar ali permanentemente, de olhos abertos. Certa noite, apareceu uma belíssima mulher, vestindo uma túnica branca de seda pura, envolta em luz, com encantador menino no colo.

O guarda permitiu a entrada dos dois, sem conseguir explicar depois a razão. Como demoravam a sair, foi procurá-los. Encontrou a figura da mulher e do menino estampada no lugar da pintura que desaparecia. A notícia espalhou-se e o povo afluiu em massa para venerar o prodígio, aclamando-o aos gritos: Achiropita! Achiropita. Empregava uma palavra derivada do grego acheiropoieta (αχειροποίητα), que em tradução livre significaria “feito à mão não pelo ser humano”, no sentido de resultar de uma intervenção sobrenatural. Evidentemente, a devoção foi trazida ao Brasil pelos calabreses e assumida por todos os demais imigrantes meridionais da Itália. O Bixiga promove a Festa de Achiropita desde 1908. A deste ano será a 97ª.

Como invenção gastronômica, a bruschetta também é antiga. No livro “Essentials of Classic Italian Coock” (Editora Alfred Knopf, Nova York, EUA, 1993), a escritora emiliano-romanhola Marcella Hazan (1924-2013), cujos livros de culinária eram publicados em inglês, localiza-a na Roma Antiga, de onde espalhou-se para o resto da Itália Central e Meridional (as modernas regiões do Lácio, Toscana, Úmbria, Abruzos, Campania e Basilicata). Entretanto, alguns autores gastronômicos contemporâneos sustentam que surgiu posteriormente, embora há bastante tempo. Acreditam que o vocábulo bruschetta deriva de bruciacchiare (tostar, chamuscar), palavra do dialeto falado nas zonas montanhosas das regiões do Lácio e de Abruzos. Entretanto, não existem informações certas sobre a invenção da receita, apenas indícios e especulações.

O princípio do reaproveitamento do pão relaciona-se com a piedade cristã. No passado, jogá-lo fora era considerado sacrilégio, não só porque a fartura de alimentos constituía uma miragem entre os camponeses pobres. Ainda hoje, muitos cristãos beijam o pão que ultrapassou o período de consumo, antes de atirá-lo no lixo. A motivação desse tabu (é isso mesmo?) encontra-se na pregação de Jesus, quando afirmou: “Eu sou o pão da vida; aquele que vem a mim não terá fome, e quem crê em mim nunca terá sede (São João 6:35). A interpretação é clara. Jesus assegurou ser para a alma o mesmo que o pão para o corpo, ou melhor, seu alimento.

A bruschetta clássica, finalizada com tomate, apareceu na Itália, provavelmente entre os séculos XVII e XVIII, depois que esse fruto carnudo e saboroso, levado das Américas Central e do Sul, deixou de ser considerado venenoso na Europa e cultivado apenas para efeitos ornamentais. A mudança foi balizada pelo livro de cozinha napolitana “Lo Scalco alla Moderna”, escrito por Antonio Latini (1642-1692), mordomo do cardeal Antonio Barberini, sobrinho do Papa Urbano VIII, e posteriormente de Don Stefano Carillo Salcedo, primeiro-ministro do vice-rei espanhol de Nápoles. Uma das receitas da obra mandava levar ao fogo pedaços de tomate, sem pele ou sementes, temperados com salsinha, cebola e alho picados, salpicados com sal e pimenta, acrescidos de azeite e vinagre. Resultava no antológico sugo di pomodoro.

A utilização pioneira do tomate fez com que muitos acreditassem que a bruschetta clássica é natural da Campania, a região que tem Nápoles como capital. Nela já se consumia a fresella, comida de rua inspirada no pão duro e longevo consumido pelos navegadores desde a época dos fenícios. Era servido com cobertura de legumes, verduras, atum ou aliche conservados no azeite. Nas vizinhas regiões da Puglia e da Calabria, o mesmo tipo de pão é conhecido como frisella ou frisedda. Não há certeza do pioneirismo da Campania, nem que a região natal da bruschetta seja a Toscana, como outros sustentam. Nem sempre, porém, permanece o nome famoso da receita.

Na Toscana, a preparação similar é conhecida como fettunta, elaborada com um pedaço (fetta) de pão molhado no azeite. Já no Piemonte, a bruschetta chama-se “sòma d´aj” (carregada de alho). Semelhanças à parte, o conceito é o mesmo na maioria dos pratos da cucina povera, na qual um dos princípios fundamentais constitui a reciclagem do alimento, realizada em favor do bolso ou da pregação de Jesus. Bendita bruschetta!

Receita de bruschetta clássica

Rende 4 unidades

Ingredientes:

. 4 fatias de pão italiano com cerca de 1,5cm de espessura

.2 dentes de alho sem casca

.4 colheres (sopa) de azeite extravirgem de oliva

.3 tomates maduros sem pele e sem sementes em cubos

.Folhas de manjericão a gosto

.Sal a gosto

Modo de preparo:

1.Grelhe ou asse as fatias de pão até ficarem crocantes por fora e macias por dentro.

2.Molhe os dentes de alho no azeite e esfregue-os suavemente nas fatias de pão.

3.Em uma tigela, misture os tomates, o azeite e o sal.

4.Disponha os tomates sobre as fatias de pão, finalizando com as folhas de manjericão.

5.Sirva imediatamente.

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