Por José Antônio Dias Lopes
Em homenagem aos 471 anos de São Paulo, comemorados no dia 25 de janeiro, republico um dos capítulos do meu livro “Sanduíche, Impossível Resistir a Essa Tentação”, lançado em 2018 pela Editora Melhoramentos. Trato de uma das mais deliciosas atrações gastronômicas da cidade.
Os atuais frequentadores do Ponto Chic, no Largo Paissandu, um bar popular no Centro de São Paulo, não fazem ideia do luxo que a casa ostentava ao ser aberta em 1922, no mesmo ano da Semana de Arte Moderna. Embora os sanduíches continuem ótimos, a elegância do lugar sofreu arranhões do tempo. Funcionando no térreo de um prédio de três andares, o Ponto Chic original tinha balcão e mesas em mármore de Carrara, azulejos e cristais também importados.
A clientela era constituída de homens vestidos de terno, gravata, chapéu e sapatos reluzentes. As mulheres “de família” não apareciam, apenas as “francesas” regidas pela cafetina Madame Fifi e encarapitadas no prédio. Às vezes entravam no salão enfurecidas para cobrar clientes esquecidos de pagar o dinheiro negociado pelo relacionamento de instantes atrás.
O lugar era tão chique que, por isso mesmo, acabou batizando o ponto. A clientela ia ao bar do Largo Paissandu para discutir política, arte, economia e esportes ou entabular negócios e mesmo contratar jogadores de futebol. Odílio Cecchini, o dono, integrava a diretoria do Palestra Itália e os torcedores do antigo Palmeiras recebiam tratamento diferenciado. A casa foi obrigada a fechar em 1977, por uma ação de despejo, pois estava em prédio alugado.
O proprietário do Ponto Chic morreu pouco depois. Entretanto, um ex-funcionário de Cecchini, seu braço direito Antônio Alves de Souza, adquiriu o direito de reabrir o Ponto Chic nas Perdizes, em 1978. Dois anos depois, o estabelecimento voltou a ter outro endereço no Largo Paissandu. Até hoje as duas casas pertencem aos Alves de Souza, assim como as filiais do Paraíso e Moema.
A fama do bar, porém, que sobreviveu anos a fio no coração de São Paulo, suportando a decomposição urbanística da zona e às modas no comer e beber na cidade, deve-se a um sanduíche inventado ali: o Bauru. A receita manda tirar parte do miolo de um pãozinho francês e rechear com cinco lâminas de rosbife, duas rodelas tomate, outras duas de pepino curtido no vinagre e porções iguais de três queijos (prato, suíço e estepe) amalgamados em água quente com manteiga. Essa é a fórmula verdadeira. Existem pelo menos seis variações, preparadas sobretudo fora de São Paulo. Mas, pela falta de autenticidade, não deveriam usar o nome de Bauru.
O apetitoso sanduíche já foi saboreado e aplaudido por muitas personalidades brasileiras, a começar pelos escritores Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Anthony Bourdain (autor do best-seller “Cozinha Confidencial”); as pintoras Tarsila do Amaral e Anita Malfatti; os compositores Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini; os cantores Nelson Gonçalves e Sérgio Reis; os presidentes Jânio Quadros, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva; os governadores Ademar de Barros e Mário Covas; os treinadores de futebol Oswaldo Brandão e Telê Santana; a banda dos Titãs; e diferentes estrelas da música, artes em geral, literatura, política, economia e esporte. O Ponto Chic prepara outros dois sanduíches: o Rococó (rosbife, alice, queijo gorgonzola, tomate e pepino) e o Seleto (rosbife, presunto, tomate, pepino e uma mistura de queijos fundidos). Nenhum ameaça a excelência e o sucesso do Bauru.
Sua criação teve como protagonista o radialista e tabelião Casimiro Pinto Neto, o Bauru, que ganhou esse apelido em São Paulo de tanto contar histórias da cidade homônima, onde nasceu em 1914, situada no interior do Estado, a 321 quilômetros de distância da capital. Ele chegou à metrópole na adolescência, trabalhou na Rádio Record e a seguir na Rádio Panamericana. Paulistano adotivo, casou-se duas vezes. Na segunda, teve duas fillhas: Patrícia e Cássia.
Foi locutor e executivo em ambas emissoras. Na Record, sua voz encorpada e vibrante apresentou o Repórter Esso, “a testemunha ocular da história”, como anunciava o noticioso patrocinado pela Standard Oil of New Jersey. Milhões de brasileiros ouviam-no diariamente. Ao ser lançada a televisão no Brasil, em 1952, Baru também apresentou o Repórter Esso no vídeo. Advogado formado pela Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco, nos tempos da faculdade ele frequentava, com os colegas, o concorrido Ponto Chic.
Pouco tempo antes de morrer, em 1983, contou como surgiu o legendário sanduíche. Em 1937, tarde da noite, entrou faminto no Ponto Chic. A tradição acredita que vinha de uma mesa de jogo, seu vício. “Cheguei e falei diretamente ao sanduicheiro Carlos”, recordou Bauru. “Eu lhe disse: abre um pão francês, tira o miolo e bota um pouco de queijo derretido dentro. No momento em que ia fechar o sanduíche, interrompi: calma, falta um pouco de albumina e proteína nisso, põe umas fatias de rosbife.
Carlos ia terminando de novo e eu tornei a falar: falta vitamina, bota aí umas fatias de tomate”. O pepino curtido no vinagre entrou depois, para dar à combinação de ingredientes um contrastante sabor acre. A tradição ainda supõe que Bauru estava influenciado pelos conceitos nutricionais divulgados por um livreto sobre a alimentação infantil, escrito por outro cliente do Ponto Chic, o médico e prefeito Wladimir de Toledo Pisa.
Ele traçava o segundo sanduíche, quando apareceu seu amigo Antônio Boccini Jr., o Quico. Também faminto, pediu-lhe um pedaço para provar. Gostou e encomendou um igual ao garçom Alex, um descendente de russos. “Me vê um desses do Bauru”, ordenou-lhe Quico. Na mesma noite, outros clientes fizeram o mesmo. O nome pegou imediatamente. Na cidade de Bauru, a criação do conterrâneo ilustre chegou em 1957, introduzida por José Francisco Júnior, cujo estabelecimento, O Bar do Skinão, tornou-se o seu principal centro de difusão.
O Conselho Municipal de Turismo (Comtur) da terra natal do inventor criou um selo de certificação do Bauru, concedido a estabelecimentos “que o preparam segundo a receita tradicional, descrita e protegida por lei municipal”. O primeiro, obviamente, contemplou o Ponto Chic do Largo Paissandu. Além disso, encaminhou ao Instituto Histórico e Artístico Nacional (Iphan) um pedido para dar ao sanduíche o honroso status de bem imaterial.
Espalhando-se pelo Brasil, o Bauru se tornou um ícone nacional. Em número de preparações, só enfrenta a concorrência do Beirute, surgido em 1950 no restaurante árabe Bambi, de São Paulo. Mas é o Bauru que se encontra no degrau mais alto do pódio. Feliz aniversário, São Paulo.
BAURU DO PONTO CHIC
Rende 1 sanduíche.
Ingredientes
- 1 colher (café) de manteiga
- 1 fatia de queijo estepe
- 1 fatias de queijo prato
- 1 fatias de queijo suíço
- 1 pãozinho francês, de preferência um pouco maior que o normal, ou seja, pesando entre 55 e 60 gramas.
- 5 fatias finas de rosbife de lagarto, assado sem tempero
- 2 rodelas de tomate
- 2 rodelas grandes de pepino em conserva
- Sal a gosto
Preparo
• Colocar um pouco de água numa frigideira ou panela rasa. Levar ao fogo com a manteiga. Aquecer até que se forme uma camada de gordura por cima. Abaixar o fogo.
• Acrescentar os queijos, mexendo sempre, até obter uma pasta uniforme. Cuidar para não derretam demais.
• Cortar o pão ao meio, no sentido do comprimento. Retirar um pouco do miolo.
• Acrescentar primeiro as fatias de rosbife, polvilhando-as com um pouco de sal. Colocar o tomate e o pepino. Finalmente, incorporar a pasta de queijo.
• Fechar o sanduíche e cortar no meio, em sentido diagonal.
*José Antônio Dias Lopes é jornalista e escritor especializado em gastronomia histórica e colaborador do Food Forum News. Entre em contato conosco para projetos editoriais com o autor sobre temas de história da gastronomia.