Especialistas de vários locais do mundo de ciência e tecnologia de alimentos têm trazido à luz estudos que evidenciam a importância dos alimentos processados e a não adequação da classificação baseada em níveis de processamento. Dentre eles, está a bióloga, nutricionista e mestre em Saúde Pública Fernanda de Oliveira Martins, que atua há treze anos na indústria de alimentos, quase metade desse período como gestora dedicada à promoção de nutrição e saúde na América Latina.
Dentre as diversas publicações da nutricionista, destaco os principais pontos de concordância em relação ao trabalho de difusão do conhecimento de ciência e tecnologia de forma estratégica que tenho conduzido no Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital/Apta/SAA) nos últimos dez anos: a falta de consistência leva a constantes mudanças na definição do termo “alimento ultraprocessado” ao longo dos anos; os trabalhos críticos ao “alimento ultraprocessado” destaca negativamente os aditivos, inclusive os naturais, o que é incoerente; a relação dessa categoria de alimentos a problemas de saúde como obesidade, diabetes e câncer é simplista, sem considerar todos os fatores.
Sistematicamente Fernanda aborda as inconsistências da definição de “alimento ultraprocessado”, termo oficializado pela classificação NOVA, considerada ampla e genérica por alimentos sem qualquer relação do ponto de vista da ciência e da tecnologia serem colocados em uma mesma categoria, conforme detalhado no documento Alimentos Ultraprocesados: Revisión crítica, limitaciones del concepto y posible uso en salud pública.
Nutricionista fala sobre o termo alimentos processados
Em artigo publicado pela Associação Brasileira de Engenheiros de Alimentos (Abea), a nutricionista pontuou as diferentes definições do termo, que apareceu na literatura científica pela primeira vez há 14 anos em artigo na Public Health Nutrition. Além de ter sido destacado que “em relação à saúde e nutrição, a questão não é o alimento nem os nutrientes, mas o processamento”, foi acrescentada a palavra “premium” ao termo para se referir a alimentos ultraprocessados com menos gordura, açúcar e sal, que, mesmo com essas características, não são considerados saudáveis “com poucas exceções”.
Quatro anos depois, novo artigo do mesmo autor, junto a colaboradores, destaca que ultraprocessados “não são alimentos de verdade”, “não são feitos de alimentos” e contêm aditivos em maior abundância, sem trazer argumentos técnicos para isso. Passados mais quatro anos, uma nova publicação de mesma autoria traz a classificação NOVA dividindo os alimentos em quatro grupos pelo tipo de processamento e sua finalidade, oportunidade em que os pães deixam a categoria de alimentos ultraprocessados, exceto se forem “de forma, de hot-dog e de hambúrguer”.
Em 2019, dez anos após a primeira divulgação científica sobre o tema um novo artigo é publicado na Public Health Nutrition especificando o que são e como identificar alimentos ultraprocessados, apontando ingredientes como açúcar, gorduras, sal e aditivos como não exclusivos da categoria e, ao mesmo tempo, afirmando que “ingredientes característicos de alimentos processados podem ser divididos em substâncias de nenhum ou raro uso culinário”. A publicação introduz ainda o “aditivo cosmético” como aquele que tem função de “tornar o produto final palatável ou, muitas vezes, hiper palatável”, termo que não existe em documentos regulatórios do setor.
Considerando esse raciocínio, Fernanda Martins referenciou o artigo Nutrition research challenges for processed food and health, publicado pela Nature Food, para detalhar que alguns aditivos considerados maléficos à saúde são originados de alimentos in natura. O estudo feito com 106 mil adultos franceses detalha que muitos dos 90 aditivos consumidos através de alimentos industrializados têm como fonte alimentos naturais, nos quais estão presentes em maior quantidade. Alguns exemplos são a lecitina oriunda do ovo, o ácido ascórbico oriundo da laranja, o nitrito convertido do nitrato de vegetais, a pectina oriunda da maçã e o caroteno oriundo do espinafre cozido.
Sobre a relação dos “alimentos ultraprocessados” com a obesidade, a nutricionista destacou o comentário Canceling Ultra-Processed Foods Won’t Solve Obesity de autoria de F. Perry Wilson publicado pelo Medscape com base em um estudo feito ao longo de dez anos com 9.025 crianças inglesas com 7 a 13 anos de idade. Apesar de as maiores consumidoras de “ultraprocessados” terem atingido um maior índice de massa corporal, a diferença entre o maior e o menor IMC foi somente de 0,06, sendo que os “ultraprocessados” corresponderam a 68% da dieta de 20% das crianças do topo do ranking e a 23% da dieta de 20% das crianças classificadas na parte inferior do ranking. Além disso, não houve diferença entre elas quanto ao percentual de gordura corporal, apesar de a massa corporal ter aumentado 200 gramas por ano entre as maiores consumidoras de “ultraprocessados” em relação às demais crianças. Dentro desse panorama, o médico lembra que a interação entre dieta, ambiente e estilo de vida é complexa, sendo pouco provável a obesidade ser resultado de apenas um desses fatores.
Quanto à relação do “alimento ultraprocessado” com diabetes, Fernanda Martins trouxe à tona o contrário com base no estudo Ultra-Processed Food Consumption and Risk of Type 2 Diabetes Three Large Prospective U.S. Cohort Studies, publicado no Diabetes Care. Apesar de parecer absurda a associação do consumo de “ultraprocessados” atrelada à redução do risco de diabetes tipo 2, isso ocorre justamente porque a classificação é ampla demais, tornando-se vaga, confusa e equivocada. Afinal, é óbvio que há diferença da saudabilidade entre barra de chocolate e pão integral industrializado, por exemplo, e ambos têm a mesma classificação. Diante desse quadro, a nutricionista sugere que sempre seja questionado o tipo de “alimento ultraprocessado” e o subgrupo (produtos lácteos, produtos cárneos, bebidas açucaradas etc.).
Mais recentemente a relação equivocada dos alimentos processados com câncer também foi destacada por Fernanda Martins, que publicou parte das observações de especialistas sobre o estudo Food processing and cancer risk in Europe: results from the prospective EPIC cohort study, publicado no Lancet Planet Health e divulgado através de release à imprensa pela International Agency for Research on Cancer (IARC). Dentre os pontos problemáticos apontados, está o fato de não haver um experimento nem mensuração direta da associação da alimentação de um indivíduo com o risco de câncer.
Diante do exposto, concluo que os consumidores não sabem no que acreditar, especialmente se as afirmações precipitadas partem da ciência, pois é difícil haver a percepção pelo público leigo de que estudos científicos foram desenhados pobremente, com conclusões não plausíveis e intencionalmente modificadas. Esse cenário resulta inclusive em matérias jornalísticas baseadas em interpretação equivocada. Avalio assim que parte do descrédito dos alimentos processados está no ativismo e direcionamento forçado de estudos científicos, o que afeta a credibilidade da ciência e tecnologia de alimentos, sempre tão atuante em busca de garantir a alimentação da sociedade com qualidade nutricional e segurança, preocupações que deveriam ser universais.
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