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O prato mais preparado no Brasil para as festas de final de ano é provavelmente a farofa. No Natal, recheia ou acompanha o peru assado, o Chester da Perdigão, o Fiesta da Seara ou outra ave; no Réveillon, enriquece o leitão dourado no forno, absorvendo sua deliciosa gordura e contribuindo com divina crocância. Serve preferencialmente de guarnição. Em determinados lugares do Nordeste e Norte, porém, em razão de ser bastante incrementada, torna-se prato principal. Até o churrasco gaúcho, que dispensava sua parceria, começa a incorporá-la em substituição à farinha de mandioca crua ou torrada. Sem contar a harmonização com o feijão, que a requer o ano inteiro. Mas você sabe a origem da farofa?

Elaborada com azeite, óleo de dendê, manteiga ou outra gordura animal, incorporando miúdos, linguiça, carne-seca, bacon, ovos, couve, abobrinha, batata-baroa (mandioquinha), milho, cogumelos, pinhão, banana da terra, abacaxi etc., a farofa representa a mais tradicional cozinha brasileira. Sincretiza nossa própria formação gastronômica. Seu ingrediente fundamental costuma ser a farinha de mandioca, embora também exista a importante variação com farinha de milho. Teria surgido entre os tupis-guaranis, grupo indígena distribuído no passado do sul da Amazônia ao litoral brasileiro, e também no Paraguai. Portanto, sua invenção antecedeu à colonização do território nacional pelos portugueses. Alguns historiadores imaginam o que teria acontecido.

Para conseguir um alimento mais saboroso e, intuitivamente, mais nutritivo, um tupi-guarani jogou farinha de mandioca no casco (carapaça) ainda quente da tartaruga assada que havia esvaziado ao comer sua carne. Estava inventado o prato. A receita existe até hoje e, obviamente, sua preparação é condenada pelos protetores da vida selvagem. Denomina-se farofa do casco e inclusive mereceu um verbete do mestre do folclore e da etnografia Luís da Câmara Cascudo, no “Dicionário do Folclore Brasileiro” (Global Editora, São Paulo, 2001).

Em compensação, o nome farofa veio da África, na verdade do quimbundo, língua falada pelos bantos de Angola. Câmara Cascudo, no livro “Made in África” (Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1965), explica como isso aconteceu. Em princípios do século XVI, quando os portugueses começaram a sequestrar negros nos atuais territórios de Angola, Benin, Guiné, Moçambique, Nigéria, São Tomé e Príncipe, Senegal, para escravizar no Brasil, eles introduziram naquelas regiões a mandioca e sua farinha.

Suas populações já dispunham de um tipo de farofa. Preparavam-na com milheto, grão nativo do continente africano, importante na agricultura de subsistência. A forofa de mandioca brasileira chegou e tomou o seu lugar. Além de mais saborosa, saía de uma planta fácil de cultivar, resistente às adversidades climáticas, de alto valor energético e baixo teor de proteína. Inicialmente, os africanos chamavam-na falofa ou farófia. A palavra vinha de kuvala ofa, que significa parir (preparar) morto (frio), até porque existiam receitas que não iam ao fogo.

A grafia farófias (no plural) usa-se ainda em Portugal. Mas indica uma preparação completamente diferente. Como escreveu Virgílio Nogueiro Gomes, no “Dicionário Prático da Cozinha Portuguesa” (Marcador Editora, Barcarena, Portugal, 2015) tratam-se de claras batidas com açúcar e cozidas em leite fervente. O doce assemelha-se aos ovos nevados brasileiros e à sobremesa francesa ilha flutuante. Acompanham farófias um creme engrossado com gemas de ovos.

Portanto, foram os negros desembarcados no Brasil que batizaram o prato indígena. Antenor Nascentes, autor do “Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa” (Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1932) e de várias obras fundamentais sobre nossa língua, informava que os livros lusitanos começaram a citá-la tardiamente, em torno da primeira metade do século XIX. Antônio Houaiss, no livro “Magia da Cozinha Brasileira” (Editora Primor, Rio de Janeiro, 1979), que escreveu e Alain Draeger fotografou, divide a farofa em três grupos.

No primeiro, amolece-se a farinha de mandioca na água. Pode ser quente ou fria, mais ou menos pastosa ou seca, com tempero refogado ou não. É a farofa d’água, ainda conhecida por farofa de bolão. A outra chama-se farofa de manteiga, ingrediente que pode ser substituído por outra gordura animal, azeite ou óleo de dendê. A terceira é a farofa de molho. Como as demais, tem nome explícito.

Segundo Houaiss, incorpora o molho de fundo, “cuja quantidade, por ser excessiva, pode ser aproveitada”. A seguir, dá a receita: “Para cada quantidade do molho na frigideira, juntam-se, mexendo bem, duas a quatro (….) de farinha de mandioca”. As três técnicas comportam um número ilimitado de variações. Houaiss chegou a essa conclusão depois de ir à casa de um amigo e provar um elenco de 83 modalidades de farofa. “(…) difícil era saber qual a melhor”, sentenciou ele.

Já a mandioca, de onde sabemos que sai a farinha, tem nome puro-sangue indígena. Foi batizada cientificamente pelo austríaco Emmanuel Pohl, botânico que percorreu o Brasil entre 1817 e 1821. Ele a chamou de Manihot (forma latinizada de “mani-oca”, como os nativos a designavam) esculenta. Os portugueses, que no início julgaram-na ser um pedaço de pau, deslumbraram-se com a maneira dos índios rasparem sua casca, secarem, espremerem, ralarem e a transformarem em farinha comestível. O dramaturgo, romancista e ensaísta Guilherme Figueiredo lembra no livro “Comidas, meu santo!” (Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1964) que o nativo pó branco teve por algum tempo nome curioso. Era conhecido por “farinha de pau”.

No relato do tempo em que viveu no Brasil, publicado em 1578, o escritor e pastor protestante Jean de Lery contou como os índios a saboreavam. “Tomam-na com quatro dedos na vasilha e a atiram mesmo de longe com tal destreza na boca que não perdem um só farelo”, disse. “E se nós, franceses, os quiséssemos imitar, não estando como eles acostumados, sujaríamos o rosto, as ventas, as bochechas, as barbas”. Os índios aproveitavam integralmente a mandioca. Derramavam o caldo liberado pela raiz, durante a fabricação da farinha, em recipiente de barro; desidratavam-no no fogo para obter o beiju, primitiva panqueca. Também cozinhavam sua raiz inteira, comendo-a pura ou coberta de mel silvestre; ou então a esmagavam, para acompanhar outros alimentos.

O povo nacional criou tanta intimidade com a farofa que lhe deu sentidos fora da mesa. Um deles é seu uso em frases curtas que têm a finalidade de provocar reflexão ou humor. Exemplos: por fora muita farofa, por dentro só molambo (indivíduo fraco); restaurante que vende farofa, não pode ligar o ventilador de teto; estar morto com farofa (sentir-se esgotado, exaurido, fatigado); você é a farofa que faltava no meu feijão. Os brasileiros ainda atribuem ao popularíssimo prato diferentes acepções semânticas. Farofa pode ser conversa fiada, fanfarrice, jactância; coisa sem importância ou valor; pessoa que promete uma coisa e não realiza, deixando-a no papo; bajular, puxar muito o saco de alguém; terminar em farofa é acabar em nada. No Nordeste há outro significado. Farofa designa o evento que reúne muitas pessoas e para o qual cada um leva alguma coisa.

Nos últimos dias, as redes sociais estouraram como pipoca (ou seria pulverizaram como farinha, já que falamos dela?) um acontecimento gigante desse tipo. Referimo-nos à Farofa da Gkay, nome profissional de Gessica Kayane, humorista e influenciadora digital paraibana. Ela possui quase 1,7 milhão de seguidores no YouTube, Instagram e TikTok. Foi a quinta comemoração sucessiva do aniversário de Gkay, celebrada em 2022 nos dias 5, 6 e 7 de dezembro.

Transcorreu em Fortaleza, em um hotel cinco estrelas. A influenciadora digital ofereceu alimentação, passagem de avião exclusivo e hospedagem para os convidados, na maioria também celebridades da internet. Ivete Sangalo e outros artistas famosos de igual ou menor talento artístico, haviam confirmado shows. Além disso, fechou acordo de transmissão com Multishow e Globoplay. O evento teria custado cerca de 8 milhões de reais. Obviamente, renegou a tradição de baixo custo e fácil preparação do alimento que lhe serviu de mote. Não há limites para o imaginário humano. E viva a farofa!

Receita de farofa de manteiga com batata-baroa

Rende 6 porções

Ingredientes

.75ml de azeite

.1 cebola cortada em finas rodelas

.2 dentes de alho picados

.6 cebolinhas verdes picadas

.3 xícaras (chá) de farinha de mandioca

.2 ovos fritos picados

.1 xícara (chá) de batata-baroa (mandioquinha) cozida, cortada em pequenos cubos

.50g de manteiga

.Sal e pimenta-do-reino moída na hora a gosto

Decoração

.Cebolinha verde para polvilhar

Modo de preparo

1.numa frigideira grande, aqueça 2 colheres (sopa) de azeite.

2.Acrescente a cebola, o alho e deixe dourar. Junte a cebolinha verde e em seguida coloque a farinha de mandioca.

3.Misture bem e adicione os ovos e a batata-baroa. Tempere com sal, pimenta e deixe por mais alguns minutos no fogo baixo, mexendo seguidamente, até a farinha absorver os temperos.

4.Apague o fogo e junte a manteiga e o azeite restante, misturando bem.

5.A farofa deve ficar úmida.

6.Polvilhe com a cebolinha verde e sirva.

Receita preparada pelo chef Léo Filho, estrela de primeira grandeza da gastronomia brasileira, que por duas décadas comandou as cozinhas dos restaurantes do Maksoud Plaza Hotel, de São Paulo, SP.

P.S. Para quem estiver interessado em variações da receita, aconselhamos o livro “Farofa”. escrito por Daniela Narciso e Danilo Rolim (Editora Senac São Paulo, SP, 2020).

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3 Comentários
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  3. Barbara 4 meses atrás

    Amei a matéria!

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